Geração do cometa ou: tudo passa
Evitar ser adulta sem continuar a ser criança. (Patrícia Lino)
Tudo passa. Você pode completar com <menos a uva passa> ou <tudo é passageiro, menos cobrador e motorista> ou, ainda, imaginar as fotos daqueles senhores italianos de peles curtidas ao sol das praias napolitanas onde Lila e Lenu forjaram suas adolescências. Viver um pouco mais faz a gente perceber, não sem efeitos colaterais, que realmente tudo passa. Amor e horror, assistimos as coisas, as pessoas, os lugares: tudo mudando.
É recorrente a cena que tento dirigir mentalmente: meus pais nos seus vinte e poucos anos, com as filhas na ponta das mãos, a passear no Parque da Prainha nos anos 1980 em Vila Velha. Sei que sou enganada pelas memórias suplantadas por fotos, eu não tenho condições de lembrar de quando tinha cerca de quatro anos, mas me lembro. Da sensação do vento forte, que chegava dar frio caso não estivesse sol. Do barulho das crianças brincando que não era alto porque o lugar era muito grande e muito aberto: o som se perdia até encontrar uma parede. Lembro de repetir no escorregador e no balanço. O suingue do balanço sempre foi hipnótico. Quase virar, quase cair, quase voar.
Nasci na graça do ano de 1986, sou da geração do cometa – o Halley – visível a cada 75-76 anos. Ele só poderá ser visto daqui a 38 anos, e nesse cálculo você mata a charada da minha idade. Dizem que há algo místico que envelopa as pessoas nascidas neste ano, eu particularmente só acho muito bonito o final do ano ser oitenta e seis, números que gosto de desenhar. Queria imaginar essa outra cena, para mim imemoriável, era apenas uma bebê na barriga de minha mãe. Queria poder sentir como foi olhar para o céu em fevereiro daquele ano e esperar este evento tão raro, o cometa em seu periélio, o ponto em que a órbita do cometa está mais próxima ao Sol e assim fica favorável para a observação terrestre.
Não vi o cometa, nem sei se conseguirei. Estive pensando, em especial nesta semana, na quantidade de outras coisas que aconteceram neste intervalo chamado “minha vida”. Hoje, 29 de agosto, dia em que escrevo a versão final dessa newsletter, é dia da visibilidade lésbica. Quando eu era adolescente, a sigla para pessoas divergentes da heteronormatividade e/ou designação de gênero era apenas GLS – gays, lésbicas e simpatizantes. Quando usei a rede social Orkut, tínhamos as opções “heterossexual, gay, bissexual, curioso”. Existia mais opções para escolher o seu <estilo> do que sua definição afetivo-sexual. Em termos de gênero, o negócio era ainda mais restrito, mas não me recordo e não encontrei dados facilmente. Posso dizer com certeza que minha geração teve pouca referência para meninas e adolescentes a fim de auxiliá-las na compreensão como bissexuais ou lésbicas. O amor entre mulheres aparecia na cultura pop de modo fetichizado ou destinado à vergonha e humilhação. Nem mesmo na gradução em psicologia pude falar sobre o assunto de maneira confortável. “Fulana está apaixonada por você” vinha acompanhada de muito julgamento moral, piadas e silêncios constrangedores. Demorou uma década para entender um monte de coisas.
Os GLS se tornaram uma sigla muito mais ampla, em constante disputa. As amigas, amigos e amigues circulam neste mundo de outras maneiras – e nisso, meu coração se alegra. Ser uma geração sem boas referências é muito difícil. Conto minhas histórias com frequência para os colegas da faculdade, que tem cerca de vinte anos a menos que eu. Descrevo a alegria de poder conviver, por exemplo, com pessoas trans tão jovens. No meu círculo próximo, muitas pessoas transicionaram depois dos trinta anos – não é só um cometa que demora para passar, as condições socioeconômicas são lentas demais para conter as urgências de uma vida. Tudo passa e o tempo é inexorável. O que pode esperar? Lembro de sonhar, de encontrar nas músicas e na literatura, algum respiro para compreender o amor entre mulheres. Mas demorou, demorou demais chegar aquela paz, aquele prazer em gostar de alguém porque se gosta de alguém. Porque amar é bom. E ponto.
Poder assistir aos quase quarenta anos uma faceta menos feia do mundo – apesar dele não estar lá essas coisas – tem sido uma felicidade em meio ao caos. Ver que o amor entre pessoas (todas) é uma bandeira a ser defendida, fincada, reerguida, quantas vezes forem necessárias. Queria voltar no tempo e visitar outras cenas do meu desenvolvimento. Queria pausar e segurar no meu próprio rosto, com carinho e calma e dizer: respire. Queria limpar as dolorosas e preconceituosas conversas que fui obrigada a participar. Queria ter me aproximado de tantas amigas que também não sabiam o que dizer ou sentir. Queria ter outras memórias. Mas não posso. Ao meu alcance, está o brinde ao agora. Saúdo nesta edição, as mulheres que amam mulheres. Tudo passa, inclusive o não saber. Tim-tim.
Por falar em mulheres, em Setembro participarei do curso A loucura feminina contra as convenções na literatura, com Nara Vidal na Escrevedeira. Vocês tem 10% de desconto com o cupom TESCREVO10 .
A ideia de loucura na literatura tem ligação direta com a ciência e o privilégio intelectual de gênero, não deixando de ser uma forma bem-sucedida de controle, especialmente do corpo feminino e das convenções patriarcais.
Considerando a amplitude desse tema na literatura, o curso relaciona ficções literárias e ensaios para lidar com conceitos como anormalidade, convenção familiar e religiosa, desobediência, desejo, inadequação e opressão de gênero e classe em personagens femininas.
Partindo de textos do século 16 e passando pelo romantismo, modernismo e produções contemporâneas, os encontros discutem trechos de obras como Um Teto Todo Seu, de Virginia Woolf, e A Amiga Genial, de Elena Ferrante, além de obras de autoras/es como Shakespeare, Emily Bronte, Flaubert, Mary Woolstonecraft, Sylvia Plath e outros. Um curso para quem se interessa em observar aspectos da literatura como pistas para compreender o papel e a produção ficcional de escritoras do nosso tempo, com base em referências anteriores literárias e históricas.
Quando? 24 a 26 de setembro, das 18h30 - 20h30
Onde? Online, inscrições em https://escrevedeira.com.br/produto/a-loucura-feminina-contra-as-convencoes-na-literatura
(texto de divulgação do site da Escrevedeira)
Drops:
Alô pessoal que está ou estará em SP/SP neste final de semana: participarei da Primavera dos Livros, neste domingo (01/09) às 15h na mesa Pequenas revoluções literárias - maneiras contemporâneas de formar leitores. O evento será no Galpão Cultural Elza Soares, na Al. Eduardo Prado, 474. Vem me ver?
Uma conversa sobre rotinas criativas e escrita, com
na Seiva - gratuito! Ainda sobre a Carol, indico seu romance Diorama, que tem uma cena muito bonita sobre a intimidade entre mulheresAinda sobre a Seiva, o primeiro episódio do podcast deles, o Clareira, é com a musa
<3Na caixa de setembro do Círculo de Poemas: Destinatário desconhecido: uma antologia poética (1957-2023) do poeta alemão Hans Magnus Enzensberger traduzido por Daniel Arelli, que também traduziu a poesia de Hannah Arendt. Também temos Em Soneto: a exceção à regra, onde temos 14 sonetos brasileiros reunidos pelos poetas André Capilé e Paulo Henriques Britto. A Círculo é parceira dessa newsletter e o cupom de desconto para assinatura é CARTAS15, que te garante 15% de desconto
Para as sáficas tardias, indico o filme Está tudo bem comigo? com Dakota Johnson, em exibição no streaming Max
Para ler: Antes que eu me esqueça – 50 autoras lésbicas e bissexuais hoje, com organização de Gabriela Soutello. Gratuito para assinantes Kindle Unlimited
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Um abraço e até a próxima edição,
paulamaria.
Tudo passa mesmo. Que bom que as coisas estão melhores agora. Espero que melhorem ainda mais no presente e futuro. É preciso estar atenta e forte - sempre. 🌻
O status curiosa do Orkut me destravou uma memória que estava esquecida rs Adorei o texto!