Furtacor: o que se altera conforme a luz
🎶I'm pissed off, funny and warm/ I'm a good man in a storm / And when the fall is torrential, I'll recall / Shameika said I had potential (Shameika - Fiona Apple)
O sol, o poema
Barcos sobre a água natal.
Água negra, animal de esquecimento. Água lilás,
única vigília.
O mistério ensolarado das vozes no parque.
Oh tão antigo. (Alejandra Pizarnik, Extração da pedra da loucura)
No mês de março, as cartas serão temáticas. Dia oito é dia internacional da mulher e convoquei colegas de newsletter para escrevermos sobre o tema, livremente, cada pessoa à sua maneira. Hoje, a última carta.
Entre ode e elegia, uma gama de tinturas que pintam o mês de março. Por aqui, ele foi longo e confesso que a essa altura, nem parece mais que o dia oito aconteceu. Termino essa série de textos com o mais difícil deles, com espaços e escorregões, e também com carinho em cada palavra.
Por anos me ocupei com a defesa da existência das mulheres, lutando contra a misoginia e o machismo. Me especializei com cursos, livros, palestras, vídeos e prática, clínica e militante. Em todos esses anos, me via com pilhas de dados e pesquisas nas mãos, sentindo a obrigação de propagar tudo o que aprendia para que, dessa forma, a vida das mulheres – logo, também a minha – pudesse ser mais protegida ou, ao menos, estivesse em menor grau de aviltamento. É redundante dizer que, no Brasil dos anos 2020, a crescente dos dados foi exorbitante, e, infelizmente, esmoreci como militante e me fechei, diminuí a intensidade na militância e desfiz alguns compromissos sociais. Na concha possível, com pessoas nas quais me sinto segura, descansei.
A cura para todos os males era o descanso. Para qualquer enfermidade do corpo ou da alma, Tia Encarna receitava repouso. Era o maior presente que alguém nos dera nessa vida: deixar-nos descansar e ela se ocupar da vigília. (Camila Sosa Villada, Parque das irmãs magníficas)
Acontece que viver é perigoso, disse o poeta. E os poetas são os cantantes da verdade do mundo – aprendi nas aulas de Introdução aos estudos clássicos que os gregos já sabiam disso. Então, viver numa concha não me salvaria para sempre e nem salvaria as pessoas que amo. Quando não sei o que fazer, a minha saída, quase sempre, é enfiar a cara na literatura. E, disse ainda outro poeta, um poema salva um afogado. Como contei na última carta, a literatura traz o comichão da vontade de redescobrir o mundo, ela é um lugar possível.
Entre muitos links aleatórios trocados em conversas de amigos, descobri uma definição enciclopédica curiosa. O terceiro lugar – conceito emprestado do inglês third place – é definido como o lugar onde se passa tempo entre amigos, conhecidos ou família, mas que não é nem a sua casa (primeiro lugar) e nem o trabalho (segundo lugar). A literatura, na qual incluo leitura e escrita, é meu terceiro lugar, que não tem tempo nem espaço, que se transmuta através dos anos, que carrego como um caracol leva sua concha nas costas.
O que chamamos de “vida interior” é um lampejar permanente do cérebro que quer se materializar sob a forma de voz, de escrita. Por isso, eu olhava à minha volta, esperando; para mim, então, a escrita tinha, essencialmente, olhos: o tremor da folha amarelada, as partes reluzentes da cafeteira, o anular da minha mãe com a água-marinha que emanava uma luz celeste, minhas irmãs que brigavam no pátio, as orelhas enormes do homem calvo com o avental azul. Eu queria ser o espelho. (As margens e o ditado, Elena Ferrante)
Redescobrir o mundo é uma aventura que espero sempre poder topar, porque sei que depois de uma avalanche, de um terremoto, de um vulcão em erupção, de uma enchente, de um tsunami, de um divórcio, de uma morte: a vida se refaz, continua, insiste, teimosa que ela só. Para algumas existências, redescobrir o mundo não é uma escolha, é o modus operandi. E foi assim que entrei no “Parque das irmãs magníficas”, conhecendo aos poucos seus cantinhos, seus arbustos, suas sujeiras e suas flores. O tilintar dos saltos de acrílico, as unhas que arrancam sangue e também acariciam peles às escondidas – por vezes, também nos holofotes. Travestis que são mães, mulheres, pássaros, onças, tias, amigas, inimigas.
O par de meias roubado de minha avó, o vestido que costurei com uma cortina que fedia a inseticida, a maquiagem que minhas colegas, minhas primas e minha mãe descartavam. O perfume que escondi no bolso quando a mulher da farmácia se distraiu. Os sapatos que consegui comprar às escondidas após dois anos economizando cada moeda que meu pai me dava para o lanche do recreio. Sim, eu era uma ladra. E tinha outra opção? De que outra maneira possibilitaria aquele ritual se não fosse por meio de roubos, enganos, mentiras? (Parque das irmãs magníficas, Camila Sosa Villada)
Na entrevista de Camila para Tamy, a autora descreve a escrita como um local de sofrimento, mas inevitável, pois é o que sabe e precisa fazer. Entre risos, apontamentos e um pássaro que atravessa a sala da conversa, me reencontrei com a autora que havia acabado de ler e senti, verdadeiramente, que conheci, aprendi e me curei através de suas palavras. A vida das mulheres não pode ser uma vida ensimesmada na defesa irrefletida do gênero, que nossa querida Simone já disse um século antes de nós: não se nasce, torna-se. O mundo não é cartesiano, como decidiu um homem de um milênio e meio atrás. Vivemos entre tinturas infinitas e a vida tá aí para pintarmos muitas telas, inclusive nós mesmas, mesmos e mesmes.
Para mim, a escrita verdadeira é isto: não um gesto elegante, estudado, mas um ato convulsivo. (As margens e o ditado, Elena Ferrante)
Neste terceiro lugar, abro diariamente novas telas. Uma atitude ativa que milita na contramão da captura, forçando brechas entre as dores, doenças e cansaços impostos pelo mundo que não é feito para mim. Defendo meu tempo e com isso posso me encontrar com quem me rodeia num lugar mais interessante: as nossas hesitantes e maravilhosas diferenças.
A solidão era uma liberdade na vida dos homens, mas Carmen ainda não tinha certeza de como funcionava para ela. Parou. (Diorama, Carol Bensimon)
Quando alguma de nós estava triste, Angie convidava para tomar algo quente em algum bar aberto e dizia ‘Ser travesti é uma festa, meu amor, olhe para todas as outras que estão olhando pra gente’ e apontava as garotas espantadas que, das outras mesas, nos encaravam como fôssemos extraterrestres. (Parque das irmãs magníficas, Camila Sosa Villada)
Dicas:
Documentário Advanced Style, sobre mulheres estilosas 60+ em Nova Iorque, disponível no Cine Sesc Digital
O interesse carniceiro pelo trágico vida das mulheres que escrevem, texto ótimo da
O que está acontecendo no Norte do país, notícias da
da sua terra natal31 de março é dia internacional da visibilidade trans. Um local para colaborar
Segunda feira, 03 de abril, estarei no Miudezas Literárias do Clube Cidade Solitária a convite da Thais Campolina e na companhia das poetas Marina Grandolpho e Pâmela Rodrigues! Inscrições aqui
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um abraço e até a próxima edição,
paulamaria.
Mais uma ótima edição! Tomando a liberdade de deixar aqui um texto sobre o meu terceiro lugar <3 https://imaginaso.substack.com/p/imagina-so-um-lugar-onde-voce-se
adorei isso do terceiro lugar <3