Antes de começar, uma novidade:
Criei um formulário anônimo para receber sugestões de pautas para a newsletter. Quero ouvir de vocês sobre o que gostariam de ler por aqui. Algumas escritoras que admiro praticam esse desafio, achei que valia tentar (né ?).
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Estou apaixonada. Fazia um certo tempo que não era abalada desse jeito. Mudei as prioridades, abandonei obrigações e penso o tempo todo em como criar oportunidade para o próximo encontro. Quando o date acontece, já tenho ansiedade de pensar no fim – queria mais, mais tempo, mais mergulho, mais grude. Me demoro deliciosamente em seus detalhes, saboreio cada pedacinho, cada palavra, cada movimento. Apesar de me considerar viciada em paixões, o endurecimento sentimental dos últimos anos me fez mais cética e desconfiada. Aqui não teve jeito: me ferrei. Tem encontro que pega de surpresa, nocauteia na distração, derruba e monta no seu ventre. Quando percebi as costas na lona, já era tarde demais.
Quem vê de longe pensa que foi sempre assim, que desde o começo sou facinha nesse metiê. Quem vê de perto tem uma impressão parecida. É aquela velha máxima: quem vê close, não vê corre. Para me apresentar como essa pessoa aberta, animada e otimista (até certo ponto), tive que insistir, mas insistir muito. Fingir costume não me apraz, preciso comunicar uma generosa pitada de verdade ainda que no flerte, na pegação ou na piranhagem. Se me tiver, mesmo que só um pedacinho, saiba: é real, mesmo que dure apenas alguns dias.
Essa confissão poderia ser um mea culpa para paixonites do passado ou um flerte bem mequetrefe – baita esforço numa indireta que poderia ser só uma mensagem do tipo ‘bora sair de novo?’. Tentei de modo engraçadinho apresentar minha obsessão da semana: Julio Cortázar em Histórias de cronópios e de famas. Ainda preciso estudar mais para ter alguma propriedade de comentar sobre este fantástico autor, contudo já posso compreender que além de escrever como um mestre, este livro em específico é feito no meu gênero favorito de literatura: formas breves ou paixonites em formato de texto.
Seja na poesia ou prosa, ficção ou não ficção, textos curtos e de palavras enxutas me ganham com facilidade. Talvez eu seja uma leitora boy lixo, que se apaixona intensamente pelos livros que rapidamente terminarei. Talvez o quente da relação esteja na paixão que sustenta o texto curto, em que não preciso me dedicar durante meses de leitura – o que vamos combinar, é muito difícil dadas as condições sócio-históricas de 2024. Tenho sim, lido romances longos, mas a passos lentíssimos e com muito menos brilho nos olhos. Esses romances de leitura em curso não são os livros que carrego na ponta da língua para indicar por aí, sabe? Já as formas curtas contaminam todas as minhas conversas, falo delas o tempo todo, como aquela paquera que você não quer admitir, mas está totalmente caidinha.
Mas calma, não me leve à mal nem pense que ajo sem critérios definidos. Para uma poesia, por exemplo, não basta escrever frases dando enter a cada duas palavras. Para prosa, retirar conectivos e outros elementos de sentido pode deixar seu texto com cara de um tweet. Enxugar as palavras é um exercício árduo e meticuloso, gasta tempo e estudo, com muitas tentativas e erros. Uma forma breve não é mais fácil do que um calhamaço – nem vice-versa. Forma é questão de estilo e de possibilidade. Eu, por exemplo, me sinto mais à vontade escrevendo poemas curtos, tanto no tamanho dos versos como na quantidade de estrofes. Isso me dá um trabalho muito específico, o de procurar a palavra que seja justa, que faça o encaixe necessário para exprimir a ideia e o ritmo. Não costumo escrever através das formas clássicas de métrica e rima, o que não significa, em absoluto, que não me importe com a estética e a sonoridade dos meus poemas.
Voltando ao Cortázar: ano passado, ao estudar formalmente a estrutura narrativa dos contos, conheci este autor através do texto A casa tomada. Não tenho vergonha de dizer que foi a primeira vez que li algo dele. Como disse lá em cima, de modo indireto, sempre fui apaixonada por leitura, nem sempre fui uma leitora erudita, conhecedora dos clássicos, acumuladora de grandes referências. Enfim. Durante o curso, lemos outros contistas do cânone, como Anton Tchekhov, Edgard Allan Poe, Virginia Woolf, Machado de Assis e Jorge Luis Borges. Ao analisar A casa tomada, mergulhamos no aspecto do foco narrativo e na intencionalidade do efeito produzido pela leitura do conto. Sem spoilers, deixo o link para a leitura e aviso que devo retomar o tema da interpretação numa próxima edição.
No texto Alguns aspectos do conto, o próprio Cortázar disserta acerca do gênero e nos convida a pensá-lo a partir de uma ideia viva: um conto é o plano onde a vida e a expressão escrita dessa vida travam uma batalha fraternal. Sobre a poesia, destaco o pensamento de Paul Valéry: poesia é a tentativa de representar ou restituir por meio da linguagem articulada aquelas coisas ou aquela coisa que os gestos, as lágrimas, as carícias e os beijos, os suspiros, procuram obscuramente exprimir. Ainda sobre o conto, cito novamente Cortázar:
Esse gênero de tão difícil definição, tão esquivo nos seus múltiplos e antagônicos aspectos,e, em última análise, tão secreto e voltado para si mesmo, caracol da linguagem, irmão misterioso da poesia em outra dimensão do tempo literário.
Seja o efeito de um conto ou o estado de poesia produzido por um texto lírico, meu encantamento com as formas breves se dá no espanto de perceber como, através de poucas frases, expressões simples e imagens banais é possível sentir medo, alegria, tristeza, pavor, nojo… Rir! Observar pelo olho do outro que escreve, uma cena impossível como nos contos de Cortázar e me perceber completamente entregue, apaixonada, febril…. Apenas por uma sequência de palavras, postas durante linhas que seguem um fio e, abruptamente, me abandonam ao sabor de meus sentimentos. As costas na lona, mais uma vez.
Formas breves, uma degustação:
Poemário
O que é o POEMÁRIO. SOBRE A ALMA PEREGRINA
Conjunto de poemas de qualidade duvidosa sobre a alma peregrina portuguesa.
Como usar o POEMÁRIO. SOBRE A ALMA PEREGRINA
1. Perfeito para saraus literários e sessões tradicionais de poesia.
2. Presta-se naturalmente à má leitura em voz alta: hiperbólica, arrítimica e caricatural.
Para todas as idades, a partir dos 6 anos.
(Patrícia Lino, O kit de sobrevivência do descobridor português no mundo anticolonial. Edições Macondo, 2022)
Um homem preparava arsenais invisíveis; afiava facas por baixo do pano; lustrava armaduras minúsculas; tensionava os músculos, pronto para uma guerra que iria travar sozinho a cada dia atrás da porta. Mobilizava esforços, forçava torrentes, torcia enxurradas – era um trabalho hercúleo que no entanto acontecia num canto quieto, e ninguém mais percebia. Um homem em repouso mantinha em alerta partes secretas do seu corpo: ele estava disposto a enfrentar criaturas, combater inimigos, lutar contra monstros – só que eles não chegavam, não compareciam.
(Leda Cartum, Formas feitas no escuro. Editora Fósforo, 2023)
Instruções para cantar
Comece por quebrar os espelhos de sua casa, deixe cair os braços, olhe vagamente a parede, esqueça. Cante uma nota só, escute por dentro. Se ouvir (mas isto acontecerá muito depois) algo como uma paisagem afundada no medo, com fogueiras entre as pedras, com silhuetas seminuas de cócoras, acho que estará bem encaminhado, e do mesmo modo se ouvir um rio por onde descem barcos pintados de amarelo e preto, se ouvir um gosto de pão, um tato de dedo, uma sombra de cavalo.
Depois compre cadernos de solfejo e uma casaca r por favor não cante pelo nariz e deixe Schumann em paz.
(Julio Cortázar, Histórias de cronópios e de famas. Círculo do livro, 1964)
Fala Curta Sobre Trutas
Nos haikus há várias expressões sobre trutas - “trutas de outono” e “truta que desce” e “truta enferrujada” são algumas que já ouvi. “Truta que desce” e “truta enferrujada” são as trutas que já puseram seus ovos. Acabadas, totalmente exaustas, descem de volta para o mar. Claro que havia ocasionalmente trutas que passavam todo o inverno em remansos profundos. Essas eram chamadas de “trutas que ficam”.
(Anne Carson, Falas curtas. Relicário Edições, 2022)
Essa newsletter é revisada pela poeta e jornalista
Drops:
Leia A casa tomada de Julio Cortázar aqui
Outro contista por quem me apaixonei foi Anton Tchekov. Deixo o link para seu livro: Sem trama e sem final, 99 conselhos de escrita
Em breve lançarei uma plaquete através da Mormaço Editorial. Plaquete é um formato menor do que um livro, que tem voltado à moda no meio editorial. A
inclusive está lançando suas histórias de mais sucesso através do selo Janela + MapaLab. O selo Círculo de Poemas produz plaquetes maravilhosas e tem assinatura semestral ou anual. Sou parceira do Círculo pela newsletter e com o cupom CARTAS15 você tem 15% de desconto nas assinaturas. Aproveite!Por último e não menos importante: o livro do mês do Clube Quem Quer Ler é Parque das irmãs magníficas da Camila Sosa Villada. O encontro é gratuito e acontecerá no dia 24/06, a partir das 19h. Inscrições neste link.
Aproveito para indicar a ótima entrevista da autora para a Revista 451 do mês de maio.
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Um abraço e até a próxima edição,
paulamaria.
Do Cortazar conheço apenas Instrucciones para dar cuerda al reloj, a partir de uma música do Migala. Palavras bem escritas.
Amei e super me conectei com o mesmo sentimento com livros curtos. Meu palpite é que temos muito a aproveitar e pouco tempo.... para encarar uma leitura longa é preciso certeza. Mas como ter? 😂