Eu que nunca fui mãe
Mama, life had just begun / But now I've gone and thrown it all away (Freddie Mercury)
choro de bebê*
assombro de quem
nunca fui mãe
1.
Quando nasci, um anjo torto me disse aos pés do ouvido: vê se não dá trabalho e segue a régua. A socialização feminina impõe ao bebê, desde sua designação sexual aos olhos dos outros, o papel que este mini ser deverá desempenhar. É, acima de tudo, um dever pessoal, uma dívida, uma culpa, uma nota promissória que guardam dentro da sua fralda, antes mesmo de sair da maternidade.
Quase quarenta anos se passam, porque a vida passa mesmo sem você querer e escolher até quando se fica é um privilégio de poucos. De repente você não encontra mais a nota promissória, exatamente no momento quando talvez consiga pagar ou negociar a tal dívida. Não, você não a perdeu porque nunca perdeu nada. Sempre sabe onde estão as coisas, onde se colocar, o que falar, quando calar, quando se retirar. Mas o papel sumiu. Na pasta de documentos, tá tudo lá: CPF, carteira de vacinação, certidão de nascimento, de casamento, de divórcio, nada consta do tribunal regional eleitoral. A nota promissória, contudo, está ausente.
2.
Falta uma semana para o dia das mães. Não tenho filhos, porém sou abençoada de conviver com minha mãe, tias e avó. A maternidade delas me cerca quase como se eu ainda fosse uma bebê. Os anos se passaram e eu, neta primogênita e bebezinha arco-íris de mamãe, devo admitir que ocupo um lugar de destaque na família. E com isso, também de responsabilidade. With great power comes… Vocês sabem. Sempre passei muito tempo com minha família e é claro que isso muda todas as células de um ser humano. Falar e andar tal qual, usar roupas da mesma paleta de cores e expressões tão exatas que assustam são só uma amostra do que essa conexão é capaz.
Minha responsabilidade foi inventada não só pela minha cabeça, mas também pela minha criação. Ser o exemplo sem ter exatamente um modelo para seguir. Inventar ser quem fui e sou, grudando minha cara naquelas mulheres em volta de mim e copiando seus trejeitos e palavras, herdando suas roupas e manias, comendo suas comidas, ouvindo suas músicas, seus sermões, suas incongruências. Eu já fui só uma menina sozinha – depois ganhei irmãs. É que aquela menina sozinha ainda existe por aqui. E mesmo tendo sido exemplo em diversas frentes, a maternidade foi uma das quais <falhei>. Nunca fui mãe.
Falta uma semana para o dia das mães e algo aconteceu dias atrás. E eu que já queria escrever, agora me sinto obrigada. Grandes poderes vêm com grandes responsabilidades. Mas nesse caso, é só indignação mesmo.
3.
Mamãe esteve num aniversário de uma amiga sua semanas atrás. O grupo ali reunido era de pessoas que também tenho algum conhecimento, sem intimidade. Era a noite do show de Lady Gaga e o papo apareceu na roda. Também, como não? Amando ou odiando, todo mundo tem opinião. De Lady Gaga ao próximo fio da conversa, chegou-se ao papo “avós”. Acredito que o assunto deva ser corriqueiro na faixa etária dos meus pais, assim como o assunto filhos aparece na minha geração. Papo vai, papo vem e de repente sinto, estando a 1.111,8 quilômetros de distância, um sutil movimento perto dos meus bolsos. Atenzionne pickpocket! Alguém me furtou e nem tive tempo de reagir. “A Paula não pode ter mais, né?”, disse uma das colegas para mamãe na roda. Minha ausência se faz presente de um jeito esquisito, doído e confuso. Mamãe – que diferente de mim, sempre foi rápida nas respostas – já manda um “Ela não tem porque ela não quer, se quiser, pode ter filhos”. Um mal estar toma conta de mim, um enjoo, uma náusea, um cheiro ruim. A colega, que conhece mamãe a vida toda e que tem filhos da mesma idade que os filhos de minha mãe, fica desconcertada – mas imagino que não fique envergonhada ou se ache sem noção. O incômodo fica em quem não deveria. Minha mãe, que não é avó e em mim, que não sou mãe.
São muitos fios nessa conversa. O que me embolou ainda está aqui e este texto é uma forma de devolver o incômodo (minha promessa para 2025). Eu não sei se posso ter filhos. Aparentemente está “tudo certo” aqui dentro, mas acho que contei com uma dose de sorte durante minha vida sexual. Além de prevenção, que sabemos ser falha, que eu saiba nunca engravidei. É como respondo aos médicos e técnicos da área de saúde quando interpelada em exames ou consultas. “Já engravidou?”, “que eu saiba, nunca”. Não é sem uma espécie de retrogosto que profiro essas palavras. Não, eu não quero ser mãe. Mas já quis, já até quase tive certeza que estava grávida. O corpo me deu o contrário e entendi que era um sinal daquele momento da minha vida e hoje agradeço por isso. Não gostaria de ter um filho daquela família da qual me relacionava, seria um link eterno com pessoas que me detestavam e me humilharam. E a vida que se impôs depois é vida que acontece também à minha revelia: divórcio, pandemia, crise climática. O tempo passa. Eu envelheço. Os desejos, pelo menos aqueles que talvez eu tenha controle, mudam.
A fala dessa pessoa me deixou infeliz. E acho que também fez mamãe infeliz. Eu não sei se posso ter filhos – e por vezes não tenho certeza se realmente não quero – e isso não deveria sair da boca de ninguém além da minha. Nem mesmo um médico, com um possível diagnóstico de infertilidade poderia me dizer: “Paula, você não pode mais”. A maternidade é algo tão diverso e possui tantos caminhos possíveis em 2025 que esse destino tão determinante é quase uma burrice. Não é só a ignorância que me machuca. É a invasão. É tirar de mim a nota promissória exatamente quando posso negociá-la. É roubar a oportunidade do meu protagonismo de decisão. É usurpar, mais uma vez, que eu possa falar em meu nome: terei se quiser e minha vontade não lhe diz respeito.
No dia das mães fico muito feliz em poder comemorar a presença de quem me criou. Adoro ver a timeline da rede social repleta de homenagens à essas mulheres que nos cuidam, nos levam no colo, nos alimentam e nos acalentam do mundo lá fora. E também me deixa com nó na garganta porque talvez nunca consiga responder a insistente pergunta com a tranquilidade que gostaria. Nesse texto, pego a nota promissória de volta para rasgá-la, não sem pesar, mágoa ou dúvidas. Já conversei com o anjo torto mais vezes do que gostaria e ele já sabe que a régua hoje em dia quem determina sou eu. Apesar disso, a maternidade é uma cláusula persistente, de letras miúdas e palavras difíceis.
Espero que você que também não é mãe sinta meu abraço no dia de hoje. É com carinho, com medo e também com coragem que escrevo essa crônica.
Drops
*: este poemeto faz parte da minha plaquete “Miolo do verbete”, publicada pela Mormaço Editorial e está em pré-venda por R$20
A primeira frase da crônica é inspirada nesse poema de Adélia Prado
- está montando um Atlas de Mães no Substack
Festival Poesia no Centro rola nos dias 16-18/05 em São Paulo
Finalmente sairá a 1ª edição de a.galinha. Em breve, informações
Minha mãe é uma sereia está em cartaz na MUBI e na Prime Video
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um abraço,
paulamaria.
Paula, esse texto me tocou demais. Obrigada.
Que texto lindo e verdadeiro, Paula. Imagino que tenha sido bom escrever