🐻Escute as feras - resenha crítica
Pois fui, durante um tempo, menino e menina, árvore e pássaro, e peixe perdido no mar. (Empedócles)
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Resenha crítica do livro “Escute as feras” de Nastassja Martin, tradução de Camila Vargas Boldrini e Daniel Lühmann (Ed. 34, 2021).
Encontrar a morte, dizer <oi> e retornar à vida. Em agosto de 2015, a antropóloga francesa Nastassja Martin foi atacada por um urso nas montanhas de Kamtchátcka, na Rússia. No livro Escute as feras, através da ficcionalização de si e da história, acompanhamos o encontro que desencadeou uma série de metamorfoses: no dentro e no fora, em si mesma e no mundo. O texto é dividido em quatro partes intituladas com as estações do ano, e começa no outono. Publicado no Brasil pela Editora 34 na Coleção Fábula, enseja assim uma pergunta: qual a moral da história?
A antropóloga viaja com o objetivo de estudar os even, povo originário habitante da Rússia pós-soviética da região das florestas siberianas, através da etnografia – metodologia de pesquisa muito utilizada nas ciências humanas e em especial na antropologia. Etnografar é descrever e estudar a cultura e o comportamento de grupos sociais, uma metodologia que nasce no final do século XIX com o intuito de pesquisar comunidades pequenas e culturalmente isoladas. Inicialmente, a pesquisa era realizada através de observação de instrumentos, objetos e outros tipos de registro coletadas em campo, com distanciamento da pessoa pesquisadora. Assim, a Antropologia descrevia uma realidade até então desconhecida, com <neutralidade> e pouco interesse nas relações humanas. Percebeu-se, contudo, que a observação participante – isto é, a presença em campo de quem pesquisa – é fundamental. A carreira de Nastassja é marcada por trabalhos de observação participante e a viagem-expedição para a Rússia também tinha esse objetivo. Mas a vida tinha outros planos.
Pescamos, desde a dedicatória e epígrafe, o tom que acompanhará a história: a relação com a natureza e a pluralidade de formas – somos metamorfoses e não monolitos. Em suas primeiras páginas, a narradora Nástia registra: “(…) sou essa forma incerta de traços desaparecidos sob as brechas abertas no rosto, coberta de humores e de sangue: é um nascimento, pois claramente não é uma morte. (p. 7)”. Liberdade e aprisionamento são evocados. Se neste encontro fatal eu nasço ao invés de morrer, qual é a forma que se atualiza em mim? “Escuto a fera, sou a fera”. O que nos faz humanos? O que nos faz animais? Se existe uma barreira, aqui a temos em frangalhos e é a partir destes destroços que a autora compõe sua personagem e também a história que nos conta.
“O urso materializa um limite. O acontecimento “urso” e suas consequências exigem que eu renuncie de uma vez por todas à violência com a qual estou no mundo. (…) Desenrolando o fio do pensamento dela (a terapeuta), fui procurar do lado de fora algo que está em mim, o urso é um espelho, o urso é a expressão de alguma outra coisa que não ele mesmo, algo que concerne a mim. (p. 58)”
A narrativa repete uma série de temas: amor, ódio, transformação, comunicação, incompreensão, xenofobia, compreensão, repetição, alienação. Ao retomar os mesmos temas, evidencia sua intenção. Como num quebra-cabeças miúdo, muitas peças parecem ser da mesma cor – logo, parecem ser iguais – mas à medida em que se segue montando, é possível perceber que cada uma cumpre sua função ao se encaixar. A totalidade contudo não é alcançada. Para entender a história e sua moral, precisamos agir etnograficamente. É preciso chegar perto da paisagem literária e compor com ela. Observar o que acontece quando nos aproximamos. Olhar para nós mesmos, ao mesmo tempo em que olhamos para a história. Ao chegar mais perto do encontro com o urso e seus desdobramentos, nos encharcamos com palavras: passagem, retorno, encontro, liminar, sonho, imagem, identidade, negociação, renúncia, armadilha, feitiço, mito, tempo, impossível, incerteza. No repeat.
O banho de palavras auxilia na comunicação com nossa narradora. Nástia buscava compreender o que era exterior a si, essa era sua jornada como antropóloga – olhar para fora estando presente -> trazer para dentro e trabalhar com palavras -> devolver para o mundo sua compreensão, sua ciência, sua técnica. Quando a vida lhe impôs outro script, do tempo e espaço da natureza, descobriu outro caminho naquela floresta. A antropóloga então é forçada a sair do mundo exterior (de apenas observar a paisagem) ao ser jogada no abismo que é <olhar pra dentro>. Esse abismo aparece na mirada do urso, no seu próprio rosto desfigurado, na dor e no esquecimento do que há <lá fora>. De repente, movida intensamente pela melancolia interior, o caminho é roto e assim permanece. Essa é a nova paisagem. Nástia está metamorfoseada em estado desconhecido, suspenso e incerto. Ao sair viva quando se esperava morta, é obrigada a recompor não apenas o próprio rosto, mas também o olhar para o mundo.
Rostos e olhares então nos acompanham por todo o livro. É através deles que se faz a leitura do mundo, assim <a comunicação> se transfigura na cara do outro, seja o rosto que fala sobre ele mesmo, seja o que ele fala sobre Nástia. Recorto algumas cenas: o homem que faz a sua primeira foto após o ocorrido; o rosto que ela esconde quando é transferida de hospital; o sorriso amarelo do médico; o olhar maldoso da enfermeira; os beijos entre médicos e enfermeiras; o beijo do urso; seu maxilar guardado dentro do maxilar do urso; suas lágrimas no rosto quando a mãe e o irmão chegam ao hospital; o rosto que não vê, mas escuta, do bêbado cantante; quando se esconde dos estudantes de Salpêtrière; a fala da psicóloga que diz que o rosto é identidade; o olhar de seus amigos se torna insustentável e a compele a partir novamente. A costura de rostos e olhares nos permite fazer junto com ela o jogo do dentro/fora que rascunha para nós qual será a moral da história.
“O que está por baixo do rosto, o fundo humano dos bichos é o que o urso vê nos olhos daquele que ele não devia olhar; é o que meu urso viu nos meus olhos. Sua parcela de humanidade; o rosto por baixo do seu rosto. (p.91)”.
Ódio e amor são outros duplos importantes na jornada de Nástia. Apesar de tentador, não devemos pré qualificar as situações vividas pela personagem. Sua metamorfose subverte os sentidos a priori. Não há julgamento moral sobre seu encontro com o urso e suas experiências humano-humano são afetadas radicalmente. Ao retomar o contato com humanos, Nástia balança entre percepções de intromissão, desrespeito, medo, ignorância e impossibilidade de conexão e compreensão. Os jogos de poder estão representados mais claramente em figuras masculinas e técnicas (como os profissionais de saúde envolvidos em sua recuperação) e é comum que o ódio apareça nessas dinâmicas – que produzem o desejo de desaparecimento em Nástia. Quando nos deparamos com o amor, as relações humanas e não humanas têm os mesmos pesos e medidas. Ao se tornar miêdka (marcada pelo urso), vive entre mundos, em constante transformação que já era inerente à vida, mas que agora toma a dimensão do fora que chega à superfície de si mesma. Dária, a figura materna que encontra nos even, toca seu coração diversas vezes com a defesa máxima do amor, fator determinante para que a vida possa continuar a viver. Assim, consegue compreender suas relações através de outros sentidos, como o chamamento silencioso por sua mãe (a originária), através do coração. Um chamamento que atravessa terra e oceanos.
“Minha mãe me aperta em seus braços com toda a força que lhe resta, meu irmão envolve nós duas e esconde da face do mundo nosso rosto encharcado. Choramos juntos e é realmente muito verdadeiro. (…) Eu não pareço mais comigo mesma, e, no entanto, nunca estive tão próxima de minha compleição química; ela se imprimiu em meu corpo, sua textura reflete ao mesmo tempo uma passagem e um retorno.”
Um livro que instiga, incomoda e questiona nossos pressupostos diante do horror, da quase morte e do desconhecido – seja ele o mundo lá fora, seja ele o interior de nós mesmos.
Drops
“Escute as feras” foi lido no Clube Quem Quer Ler em fevereiro. Em março foi a vez de “A biblioteca do fim do mundo” com a presença do autor Rodrigo Casarin. No próximo mês,
estará conosco com seu último lançamento, “108”. Para participar é simples, confira aquiAinda sobre Escute as feras:
Sobre o livro no Leituras org
- oferece a oficina Criatividade através da Colagem
- fala sobre a criação na era digital
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um abraço,
paulamaria.
amo esse livro 💕💕💕 resenha linda
uau <3