Oi!
Primeira coisa: obrigada a todo mundo que colou no evento d’O Texto & O Tempo no último final de semana. É uma honra participar da organização pela terceira vez e ver o crescimento da força e do tamanho dessa empreitada.
, você é massa demais. <3Por aqui, enquanto tiro férias da faculdade, descanso um tiquim também da newsletter. Semana passada dei uma pausa e hoje lhes apresento um dos trabalhos que escrevi neste semestre. Ler é maravilhoso, escrever sobre a leitura é um desafio engenhoso.
Adianto que alguns aspectos generalistas ou específicos demais podem não passar no crivo de especialistas, mas é uma <monografia> baseada num curso de quatro meses, escrita com a cabeça exausta duma estudante em final de semestre. Espero que o texto conquiste seu coração a ler Italo Calvino e não a me admirar como crítica, rs.
O tom é acadêmico, portanto, ligeiramente diferente dos usuais textos dessa newsletter. Esse é um dos tipos de texto da versão paga da newsletter, que hoje segue aberto na íntegra. De qualquer forma, se houver dúvida, não hesite em comentar, tanto respondendo a este e-mail ou na caixinha da plataforma (pra quem lê pelo site ou aplicativo do Substack).
Continuarei descansando, lendo com vigor (outras coisas, ufa!) e matutando coisas para a newsletter (e outras novidades, <3).
Boa leitura!

O visconde partido ao meio publicado na Itália em 1952, é o primeiro volume da chamada trilogia fantástica de Italo Calvino, composta também pelos romances subsequentes O barão das árvores de 1957 e O cavaleiro inexistente, de 1959. A trilogia segundo o autor, constitui uma espécie de pré-história do homem contemporâneo através de seus antepassados. Por meio de fábulas que remetem a obras dos séculos XVI e XVII, como Orlando Furioso de Ludovico Ariosto e Os contos de Voltaire, a trilogia calviniana demonstra suas inquietações acerca do mundo e do homem no contexto pós Segunda Guerra Mundial.
:::
Aspectos gerais e estrutura textual
Em O visconde partido ao meio, Calvino queria escrever uma história divertida e que cumprisse a função social de se relacionar com o leitor, uma de suas principais preocupações ao escrever suas obras. Além da comicidade, o pequeno romance apresenta-se como uma obra simétrica, fundamentada em contrastes e que mistura gêneros literários.
"Calvino se interessa pelo humano, pela condição humana e por aquilo que ela se propõe fazer. Ele não fala de um particular, mas do universal, daquilo que é comum: nossa divisão ao meio. Além disso, ele faz uso do riso para mostrar aquilo que é sério e angustiante, por isso medonho." (Rocha, 2017, p.89).
De acordo com o conteúdo visto em sala de aula nesta disciplina e também na presente pesquisa, nesta obra é possível observar a busca pela concisão e o apuro da linguagem tão caras a Calvino. Ademais, é através de uma história localizada que a discussão sobre os valores individuais e sociais consegue alcançar a universalização do tema, uma profunda reflexão sobre a humanidade: todos nós realizamos apenas uma parte de nós mesmos, a inteireza é uma utopia.
“Assim, se todas as coisas inteiras pudessem ser partidas ao meio - disse meu tio, agachado sobre o recife, acariciando aquelas metades convulsão de polvo -, todos teriam a possibilidade de sai de sua unidade obtusa e ignorante. Eu era inteiro e todas as coisas eram, para mim, naturais e confusas, estúpidas como o ar; acreditava ver tudo, porém era apenas aparência. Se algum dia se transformar na metade de si mesmo, e faço votos que isto lhe aconteça, rapaz, compreenderá coisas que estão além da inteligência comum dos cérebros inteiros. Terá perdido a metade de si e do mundo, porém a metade que sobrar será mil vezes mais profunda e preciosa. E você também desejará que tudo seja partido ao meio e estropiado à sua semelhança, porque só existe beleza, sabedoria e justiça naquilo que é feito aos pedaços.” (Calvino, 1988, p.56).
:::
Elementos narrativos
Segundo o autor, uma obra literária é tão viva quanto um organismo. Essa definição pode ser facilmente percebida durante a leitura de suas obras, pois outra característica entre as grandes marcas de Calvino é a mistura de gêneros e referências literárias. Em O Visconde partido ao meio, a fábula é o gênero mais evidente da obra, porém também é possível observar pinceladas do insólito e da fantasia.
A poikilia de gêneros na construção narrativa de Calvino diverge e atualiza a tendência realista dos autores italianos de sua época. Sua incessante busca pelo burilamento da forma e da linguagem se valem de uma mistura inteligente e nada aleatória de elementos de tradições diversas, sendo difícil até mesmo encaixá-lo na etiqueta do neorrealismo. Calvino escapa das etiquetas pois está sempre em busca do novo, ainda quando lança mão da tradição. A aproximação com o fantástico e seus vizinhos amarra as intenções do autor com a criação de uma poética própria: visual, irônica, divertida, absurda, simples e emocionante.
Sobre a presença do gênero fantástico, pode-se dizer que o autor trabalha sem impor claramente limites históricos, ainda que possamos identificar o período em que suas narrativas acontecem. E ao se utilizar do elemento insólito (um homem partido ao meio) como seu principal componente, a história do Visconde também pode ser suspensa no tempo. Com efeito, o tema principal tratado na narrativa, as dualidades em nós e no mundo, incide sobre os leitores tanto na época de sua publicação quanto no século seguinte. De acordo com a definição de literatura fantástica de Roas (2001) e Furtado (1980), que acreditam na irrupção do insólito e na sua condição de inexplicável, é através das imagens insólitas podemos caminhar sobre as trilhas da verossimilhança:
"O fantástico apresenta justamente uma figura insólita que tenha uma imagem que busca a verossimilhança com o real, mas que é dessemelhante a ele e que faz parte do mundo da imaginação no qual tudo é possível de ser criado e transformado. Ele não pretende buscar uma essência inerente às coisas, mas pelo contrário: dá indícios de algo que poderia ser, mas não é, mostra a realidade invertida ou diversas possibilidades de realidade." (Rocha, 2017, p.34)”.
"A literatura fantástica pode até desprender o sujeito de seu real e desencadear sua imaginação, mas, principalmente, como nas obras de Calvino, ela pode propiciar uma leitura da sociedade, e pode fazer-nos refletir sobre o que nos torna humanos ou como somos moldados socialmente.” (Rocha, 2017, p.41).
A literatura insólita nos mostra a realidade através da problematização do que é racional porque a razão está condenada a fracassar. Essa problemática apresenta diversas possibilidades da realidade apresentada e o que é sobrenatural é natural. A partir do estranhamento do que é racional, o Calvino constrói a mescla na qual se propõe: o que é individual também é social, o que é local também pode ser universal. O exagero, a caricatura e o absurdo também nos auxiliam a ver a beleza do horror e o horror na beleza. Para além de uma dualidade, há a concomitância, a impermanência, o movimento.
"Ademais, a expressividade do insólito nas obras de Calvino trilha caminhos que acabam caindo em pontos comuns: personagens da nobreza; corpos insólitos; relação e participação na guerra; lugares importantes ocupados dentro da sociedade em que vivem; o modo fantástico de escrita; a bem-humorada crítica às ideologias do mundo pós-moderno; a fragmentação da identidade de um indivíduo; a busca pela conquista do ser e por uma completude humana utópica; a fanfarronice e o divertimento próprios ao estilo de seu autor. Por conseguinte, temos a possibilidade de diálogo e convivência entre pares aparentemente contrários em tudo: real/sobrenatural, sólito/insólito, bem/mal, vazio/cheio, angústia/riso." (Rocha, 2017, p.186)
Alguns exemplos de elementos fantásticos e insólitos em O visconde partido ao meio: o corpo de Medardo que, mesmo partido ao meio, não deixa de funcionar; os dedos decepados deixados na estrada e que indicam caminhos; as revoadas de pássaros que anunciam mortes; o médico que não pratica medicina, mas pretende capturar fogos-fátuos; o menino protestante que quer comer todos os pecados possíveis… Uma história recheada de impossíveis que convoca a imaginação do leitor de maneira perspicaz e criativa, produzindo um efeito de identificação forte e profundo.
A narração em primeira pessoa dá o tom da história. Uma criança relata a história de seu tio, Medardo do Terralba, cortado ao meio por uma bala de canhão. A voz da criança auxilia na construção do gênero fantástico do romance, que exatamente por ser uma voz infantil, tem descrições das personagens super concisas, com poucos elementos físicos, psicológicos e de ação. Sobre as ações das personagens, estas se desenrolam em torno da problemática da dualidade do Visconde e trazem à tona temas como a intolerância, a ética, a estética, a saúde e o envelhecimento. Através de imagens simples, conseguimos acessar a intenção por trás das escolhas dos elementos da história. Por exemplo, a descrição concisa da velha Sebastiana, personagem importante em todo o desenrolar da narrativa:
“(...) era uma mulher imensa, que se vestia de negro e usava um véu, com um rosto rosado sem nenhuma ruga, à exceção daquela que quase lhe escondia os olhos; havia amamentado todos os jovens da família Terralba e dormido com todos os mais velhos; e também fechara os olhos de todos os mortos.” (Calvino, 1988, p.23).
:::
Ludicidade e fabulismo
Apesar dos gêneros fantástico e insólito serem relacionados com público leitor infanto-juvenil, é importante lembrar que Calvino estava longe de ser um autor voltado à essa faixa etária. Sua exploração de diferentes gêneros literários se relacionava com sua postura pesquisadora da forma literária, muito mais do que o direcionamento geracional de suas obras. Seus livros cheios de críticas e simbolismos profundos são um prato cheio para todo tipo de público leitor, mas em especial na sua época, a comunidade adulta italiana. Contudo, seu olhar nunca abandonou a simplicidade dos textos, que iam desde os clássicos contos de fadas à ancestralidade dos mitos antigos. Calvino sabia explorar com maestria a riqueza das formas narrativas, o simbolismo com o toque humano, e, acima de tudo, a simplicidade e objetividade da linguagem fabular, que se aproxima muito da oralidade e da contação de histórias. Através das leituras dos estudos de Fritoli (2021) e Benevolo (2013), apresentaremos sobre o lúdico e o fabular na forma narrativa calviniana.
Italo Calvino era capaz de reconhecer a importância do cunho lúdico e do potencial pedagógico da linguagem fabular, que com suas obras instigam o imaginário das crianças e provocam perguntas na visão de mundo dos adultos. As “histórias de princesas e dragões” que poderiam elucidar a reflexão e a crítica em leitores mais maduros, sem se furtarem do prazer em se debruçar sobre uma história. Segundo o próprio:
Eu acho que divertir é uma função social, corresponde à minha moral; acho sempre que o leitor que deve digerir todas essas páginas deve se divertir, deve ter uma gratificação; esta é a minha moral: alguém comprou o livro, pagou, investe seu tempo, deve se divertir (CALVINO, 1993, p. 3)
Seu envolvimento com as narrativas imaginativas não se conteve apenas a trilogia fantástica, mas também teve seu ao auge com a publicação de "Le fiabe Italiane", no qual Calvino reuniu cerca de 200 contos folclóricos/populares italianos, publicado em seu país em 1956 e sem tradução brasileira até o momento. Em suma, podemos dizer que o autor se divertia em trabalhar no limite entre a literatura infantil e adulta, extraindo o melhor de ambos os mundos.
Para entendermos o uso da narrativa imaginativa na obra do Calvino, sobretudo no romance O Visconde Partido ao Meio, precisamos conceituar a fábula. O artigo de Santos (2013) apresenta a comparação entre entimema e exemplo através da definição de Aristóteles em Arte da Retórica. Para o filósofo, essas são as duas espécies de provas comuns de todos os gêneros literários. Os entimemas são silogismos de poucas proposições e podem ser de dois tipos, demonstrativo e refutativo. Já os exemplos baseiam-se em fatos que aconteceram determinadas vezes, havendo no presente uma repetição dos mesmos. Também são de dois tipos: o primeiro consiste em referir fatos anteriores; o segundo consiste em invenções feitas pelo orador, como nas parábolas e nas fábulas esópicas ou libias. A sistematização de Aristóteles dessas espécies nos auxilia no entendimento da categoria fábula. Sua postulação é baseada no que era produzido à sua época e também anteriormente, conforme autores como Esopo e suas histórias que mexiam com o imaginário. Mesmo depois de séculos, o caráter didático da fábula se mantém como uma constante nas narrativas alegóricas, pois “As fábulas tornam-se úteis na medida em que não se dispõe de muitos fatos históricos semelhantes.” (Santos, 2013, p.106).
Em sua substância, o fabular deve conter dois principais conceitos: a narração breve e uma lição ou ensinamento (comumente conhecida como “moral da história”). Jean de La Fontaine, importante fabulista do século XVII, denominou esses dois elementos como o corpo e a alma da fábula. A ideia do corpo é constituída pelo trabalho narrativo e o uso adequado das imagens, que em seu uso sensível enriquece o conceito geral. O corpo dá materialidade a alma, ou seja, as verdades gerais que tomam forma na história. No caso de O Visconde partido ao meio, na dicotomia entre o bem e mal, é a alma que ganha corpo na narrativa de Calvino.
A partir da compreensão da constituição da fábula, passamos para a distinção do conceito de alegoria. Um dos componentes da estrutura do gênero fabular, a alegoria é uma figura ou símbolo na qual a fábula terá seu centro. No caso da obra analisada, a alegoria é a própria imagem-título: um homem dividido ao meio, composto de uma metade que é benfeitora e outra parte que é a maligna. Além disso, a narrativa possui em todo o enredo a presença dessa dualidade, tanto em sua estrutura quanto no caráter moral da história: todo o romance do Visconde permeia a ideia de que o homem deve ter equilíbrio entre o bem e o mal.
Outros elementos da obra apontam para classificarmos a jornada do Visconde como uma narrativa fabular, como por exemplo a escolha de um personagem insólito que nos convence a aceitar a “inverossimilidade” de sua história. O Visconde de Terrabalda vai para a guerra e é partido ao meio por uma bala de canhão, o que nos traria talvez um personagem ferido ou mesmo morto, que poderia reaparecer como um espírito, por exemplo. Mas nesta jornada, ele é dividido em duas metades, a boa e a maléfica, e ambas continuam a existir independente uma da outra. Talvez se a história fosse contada pelo próprio Visconde, a falta da verossimilhança fosse mais difícil de ser aceita pelo leitor. Porém, o tom da história se dá exatamente porque é contada por outro narrador, que é uma criança. Este teor de contação de história, o perfume lúdico de uma narrativa de olhar infantil é impregnada por este narrador:
Toda a narrativa é contada de forma interina pelo sobrinho do visconde, ele toma a palavra em primeira pessoa, trabalhando como narrador testemunha dos acontecimentos. Um personagem que ocupa um lugar deslocado na narrativa: “Eu era livre como o ar, pois não tinha pais e não integrava a categoria dos servos nem a dos patrões. Fazia parte da família dos Terralba só por reconhecimento tardio, mas não assinava o nome deles e ninguém se via obrigado a educar-me. (CALVINO, 2011: 31)
A escolha de uma criança narradora dá liberdade ao personagem e também à história, que então se torna palco no qual Calvino brinca com a ideia de onisciência, dando ao sobrinho do Visconde conhecimento completo de pensamentos e acontecimentos dos quais não testemunhou. O Menino sem nome se torna um contador de história que não se prende a limitações de uma personagem tradicional e em sua narração vemos as semelhanças tipicamente encontradas em fábulas. A partir dessas observações, podemos concluir que O Visconde Partido ao Meio é uma obra dotada de uma simplicidade quase infantil, que por outro lado apresenta sofisticação linguística e estrutural e através de alegorias e fabulações explica um conceito complexo e universal: a desarmonia dos humanos consigo mesmos e as dualidades das situações da vida.
A história do Visconde nos mostra a genialidade de Calvino no uso das mais simples estruturas narrativas que brincam com o infantil. O autor acreditava no poder da literatura e se dedicava arduamente a cada um de seus trabalhos, tendo se tornado um dos maiores contadores de histórias do século XX, que com destreza e talento, brinca com os limites entre o fantástico e o real. Como o próprio define na introdução de Le Fiabe Italiane: “As fábulas são verdadeiras.”.
:::
Uma leitura psicanalítica
A narrativa do Visconde revela-se terreno fértil para uma leitura simbólica à luz da psicologia analítica de Carl Gustav Jung. A supracitada divisão do protagonista em duas metades opostas pode representar uma imagem literal da cisão interna entre persona e sombra, que para Jung são forças complementares que compõem a totalidade da psique humana (Santos, 2022). Nesse contexto, a metade má é formada pelos aspectos reprimidos do eu, como a agressividade, o sadismo e o desejo de controle, elementos típicos da sombra. Do outro lado, a metade boa incorpora a persona: a máscara social que moldamos para corresponder às expectativas sociais. No entanto, as partes vividas de forma unilateral, como acontece com o personagem do Visconde, apresentam suas limitações. Diferente do que em geral imaginamos, mesmo a persona da metade boa teria suas dificuldades no trato social. Sua bondade exagerada soa artificial e desconectada da realidade, tem dificuldades em compreender os limites alheios e também em se auto-proteger. Todos precisamos dos dois lados.
A oposição entre essas duas metades evidencia um impasse psíquico. Nenhuma delas, isoladamente, é capaz de sustentar uma existência autêntica ou de se relacionar verdadeiramente com o outro. Essa tensão simboliza o processo chamado por Jung de individuação, que é o caminho rumo à integração dos opostos internos, um movimento essencial para a realização da totalidade do ser. Na história, a individuação acontece ao final da narrativa, quando a parte boa e a má precisam resolver o impasse de suas existências. Então, Trelawney, o médico que não tinha interesse na prática profissional, é convocado a unir as partes e realiza a costura do corpo de Medardo. Une as duas metades fragmentadas e Pamela, a noiva dividida entre o amor fragmentado do Visconde partido, finalmente sente-se satisfeita com um noivo por inteiro. A costura do Visconde representa essa reconciliação interior: é nesse retorno à inteireza que reside a possibilidade de se tornar plenamente humano.
“que estas duas metades, a boa e a má, fossem da mesma forma insuportáveis era um efeito cômico e ao mesmo tempo também significativo, porque às vezes os bons, as pessoas demasiado programaticamente boas e cheias de boas intenções, são uns chatos terríveis” (Calvino, 2011, p. 6).
Esse impasse entre partes opostas também é descrito pelo conceito de doppelgänger ou o duplo, desenvolvido pelo psicanalista austríaco Otto Rank. Em resenha crítica de Martini (2020) sobre o texto “O duplo” de Rank, cita: "[...] o duplo aponta '... para o eterno conflito do homem consigo próprio e com os outros, para a luta entre sua necessidade de semelhança e seu desejo por diferença'" (RANK, 1925/1971, p. 7). Ao atribuir suas ações à outra metade, o personagem Medardo tenta se dissociar da própria sombra, recusando a responsabilidade por aspectos que também lhe pertencem. A própria dificuldade do Visconde em amar ilustra essa fragmentação. Nenhuma das metades, sozinha, consegue estabelecer um vínculo verdadeiro com Pamela. A metade má, dominada pela dureza e pelo autoritarismo, é incapaz de nutrir um afeto genuíno; a metade boa, excessivamente altruísta e moralista, também não toca o outro com verdade. O amor, nesse sentido, exige a totalidade do ser - uma entrega que só é possível após a reintegração.
“Meu tio ainda vivia a primeira juventude: a fase em que os sentimentos estão todos confusos, quando ainda não se distingue o bem e o mal, em que cada nova experiência, mesmo macabra e desumana, é intensa e impregnada de amor à vida.” (Calvino, 1988, p.6)
Além do conflito individual, a divisão do Visconde repercute simbolicamente na coletividade. Os habitantes de Terralba projetam em cada metade suas próprias tensões internas: o lado mau encarna desejos e medos reprimidos; o lado bom, um ideal inatingível que também incomoda por sua irrealidade. Esse movimento de projeção remete ao conceito junguiano de inconsciente coletivo (Santos, 2022), onde habitam arquétipos e padrões universais de experiência humana. Assim, a narrativa de Calvino se expande para além do drama individual, abordando também a condição psíquica coletiva, arrematando a história com as intenções centrais da obra calviniana: estabelecer relação com o leitor, não importando sua localização geográfica ou histórica. Suas narrativas são atemporais, profundas e especiais.
Referências bibliográficas:
BENEVOLO, Renata Alvetti. O fabular de Italo Calvino: influências dos contos maravilhosos. 2013. 33 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Letras) – Universidade de Brasília, Brasília, 2013.
CALVINO, Italo. O visconde partido ao meio. Tradução de Wilma Freitas Ronald de Carvalho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
CALVINO, Italo. O visconde partido ao meio. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
DE MARTINI, André. O rival semelhante: uma resenha crítica sobre O duplo de Otto Rank. Cadernos de Psicanálise, Rio de Janeiro, v. 42, n. 42, p. 155-171, jun. 2020.
FRITOLI, Luiz Ernani. Matepoemática: o lúdico lúcido de Italo Calvino. Polifonia, Universidade Federal do Paraná, v. 28, n. 51, p. 123–142, 2021.
FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Livros Horizonte, 1980.
GOMES, Natalia Guerra Brisola; BRITO, Luciana. O duplo visconde partido ao meio de Italo Calvino. Revista Letras, [S. l.], v. 92, 2015. DOI: 10.5380/rel.v92i0.39860.
NASCIMENTO, Joelson Santos. O entimema e o exemplo na retórica de Aristóteles. Prometheus - Journal of Philosophy, [S. l.], v. 5, n. 9, 2013. DOI: 10.52052/issn.2176-5960.pro.v5i9.787.
PORTELLA, Oswaldo O. A fábula. Revista de Letras, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, v. 5, n. 1, p. 83–93, 1983.
ROAS, David (Org.). Teorías de lo fantástico. Madrid: Arco/Libros, 2001.
ROCHA, Helen Cristine Alves. O insólito no espaço-corpo do Cavaleiro inexistente e do Visconde partido ao meio, de Italo Calvino. 2017. 190 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2017. DOI: http://doi.org/10.14393/ufu.di.2016.12.
SANTOS, Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana. A psicologia analítica e sombra em confronto com o sujeito. Revista de Estudos Universitários - REU, Sorocaba, SP, v. 48, p. e022014, 2022. DOI: 10.22484/2177-5788.2022v48id4807.
Agenda
FLIP: mais um ano que não irei. Estou tranquila quanto à decisão, mesmo de coração um tiquim chateado de perder a fofoca festa. Economizarei pernas e reais para organizar outros rolês e estarei de olho na transmissão das mesas online. :)
A programação do Clube Quem Quer Ler foi alterada por motivos pessoais. Em breve divulgo a data do encontro de julho.
Em agosto, o lançamento de Miolo do verbete, conto detalhes em breve também. Por último: ainda em agosto, teremos a publicação do financiamento coletivo do Literoutubro da
. Estejam atentos!Drops
Edições de newsletter:
Você é latina sim!, por
Coisas que salvei no Instagram:
Se gosta do que eu escrevo:
📖meu aniversário é em junho, você pode me presentear com livros
🪙apoie meu trabalho
💳considere a assinatura paga
📖compre caminhos curtos para caracóis comigo
🛍️use meu link na amazon (tem prime day nos dias 15 e 16/07)
📸me acompanhe no instagram
Um abraço,
paulamaria
Paulaaa ! que alegria esse texto, o visconde partido ao meio foi o primeiro livro que li na vida, como era apenas uma criança ele me assustou demais e sempre esteve em minha cabeça como um livro de terror. Ano passado ao reler dei várias risadas, pincipalmente nas passagens que eu achava assustadoras.
Uau, que aula que foi esse artigo! Italo Calvino foi uma das minhas portas de entrada no mundo da literatura insólita, muitos anos atrás. Saio desse texto inspirado a reler O Visconde, com esses novos olhares, agora. Muito obrigado :)