Eu não sei desenhar. Repito essa frase que postei no instagram ontem para começar essa carta, mas sei que você provavelmente também já falou essa frase alguma vez na vida, mesmo se você for artista plástica ou visual. Mesmo repetindo essa frase para mim mesma, tenho consciência de que saber desenhar ou saber fazer qualquer coisa depende de duas coisas, pra começo de conversa:
que você seja ensinada por alguém que sabe fazer o que você quer aprender;
treino treino treino.
Todas (todas!) as coisas que você sabe fazer hoje foram aprendidas exatamente dessa forma. Sorrir? Se comunicar? Se alimentar? Se locomover? Escrever? Amar? Odiar? Enviar um e-mail? A fórmula de báskara? Tudo bem se não aprendeu báskara.
A pandemia trouxe a sensação de que não sei mais aquilo que achava que sabia: me comunicar pessoalmente com as pessoas, andar na rua, ignorar ignorantes, e até mesmo ser psicóloga. Não foi de repente que a autopercepção me trouxe essas questões, mas agora, um ano e meio depois do fim do mundo, já está evidente a deformidade de alguns comportamentos. Sobre meu trabalho, no começo pensei que o esforço que eu fazia era da adaptação logística dos pacientes presenciais para o espaço virtual. Uma adaptação pequena, relativamente, pois eu até estava de certa forma acostumada com o atendimento virtual com pacientes expatriados. Mas... Mal eu sabia - mal todo mundo sabia - que as coisas virariam para um caminho sem volta.
Além de trabalhar remotamente, tentei em tempos de isolamento mais árduo aprender coisas novas. Comecei pelo violão, que logo se tornou um nó mental quase impossível, meses depois ganhei um ukulele do conje e ufa! Ficou muito mais leve aprender um instrumento. Também fermentei alimentos, conservas de pepino e repolho realizadas com sucesso! Pulei a “fase do pão” famosa na quarentena, mas só porque eu já tinha feito pão por muitos anos, até vendia (alô, Sarah! Alô cinnamon rolls quentinhos!). Tentei rapidamente aprender a programar, pareceu maravilhoso e deu até vontade de ser mais uma a virar uma techgirl, porém era fogo de palha e retomei pra habitual mente de humanas. E nesse bololô, também retomei o desenho, de maneira livre e despretenciosa, deixando meus pensamentos serem habitados por vozes de amigas generosas que encorajam minhas aventuras artísticas.
Ainda não sei desenhar, mas consigo rabiscar minhas artes em paz. O trabalho foi muito maior em desapegar de tudo aquilo que eu acreditava precisar - o dom, os materiais profissionais, os cursos caríssimos - e começar com os recursos que eu já tinha intimidade e que não me apavoravam ou me faziam me comparar com outros. Veja: para aprender a desenhar, tive que desaprender o que entendia como desenho. E desaprender também é um desafio.
Algo parecido aconteceu com a psicoterapia online. A Paula psicóloga que entrou na pandemia teve que desaprender, desmanchar, desenhar e redesenhar muitas formas para continuar sendo psicóloga em meio à tantas mudanças, medos e ameaças. Busquei auxílio - supervisão, leituras, cursos - com colegas que me trouxeram confiança, que compartilharam suas dificuldades e me ensinaram novas formas. Aprendi a desenhar também uma nova clínica, uma nova psicologia, que não existia até março de 2020 na minha maleta de ferramentas. E venho treinando, treinando, treinando. Até que o desenho fique mais satisfatório, confortável e bonito. Ou até eu precisar mudar tudo de novo.
Você pode conhecer meus desenhos e outras estripulias artísticas em: https://www.instagram.com/ilharga.art/
E pode apoiar meu trabalho como escritora (e também como artista) clicando em:
Um abraço e até a próxima edição,
paulamaria