Última chamada:
Se você tem curiosidade de procurar suas palavras, de dar uma chance para a poesia que mora em você, tenho uma boa notícia: dia 23/04, às 19:30, Oficina Memorabilia - exercícios poéticos. Vamos juntos brincar com palavras, a partir de sentimentos e memória. As inscrições são através do e-mail oi.pmescreve@gmail.com e o valor é R$40.
começo e fim assinalados pela pedra. bruta ou lascada. ao meio, toda a história de uma vida, memórias de si e dos outros. espaços desconhecidos, sonhos rebuscados, futuros fracassados. embalados pra presente, na caixa do passado familiar. vivo cercada de símbolos desde a primeira infância quando ainda nem sabia me contar. curiosa, revisito as quinquilharias que juntei na curta vida da velha jovem que sou. entre rabiscos e cacarecos, encontro pistas de respostas para as perguntas em loop que me perscrutam cotidianamente. sombras e sussurros saem da toca e me pedem pausa e café. sigo à risca a ordem do convite e sento à mesa, com bolo e tudo. que será que abre esse tanto de chave que eu já tenho comigo? – pergunto. pra que serve abrir tanta coisa? – escuto.
(arquivo pessoal, 2020)
Não gosto da ideia de recomeços. Parece que aquilo que veio antes não importa – e pra mim, é quase tudo o que importa. Olhando para minha trajetória profissional, tenho tudo menos uma carreira. De longe, pareço uma colagem desconjuntada, com muitos espaços vazios que, diante da interpretação alheia, podem ser vistos como recomeços. A maior fatia da minha experiência profissional é como autônoma (independente, chefe de mim mesma, dona do meu rolê e variáveis). Trabalhei por pouco tempo de carteira assinada, desfrutei quase nada de benefícios trabalhistas e nunca fui promovida, recebi aumento ou bonificações. Essa característica da minha estrada não era uma escolha óbvia, as coisas foram acontecendo e eu segui, percebendo o ritmo que a vida ia imprimindo ao passo que eu ia percebendo os acontecimentos à minha volta. Sou mais adaptável do que pensava ser e até tentei me encaixar no mundo corporativo – deus sabe o curso de coaching de vida que constava no meu currículo.
Há dois anos moro em São Paulo, a cidade que todos amam odiar. Por vezes imagino como seria ter chegado aqui antes, ter vivido meus vinte ou meus trinta rodeada de prédios, buzinas e frio. Imagino como seria ter trabalhado em <firmas>, ter vestido a roupinha primordial do capitalismo urbano e me misturado, perdidamente, ao mar de gente que sustenta essa cidade maluca. Com certeza eu seria alguma outra versão de mim e talvez até teria uma carreira. Porém, eu vim pra cá muito depois do que gostaria, porque a vida não tá nem aí para os nossos planos. Vim e aqui continuo autônoma-anônima. Quando a gente se muda–- de cidade, de trabalho, de relacionamento etc etc etc – é comum que se nomeie esse acontecimento de <recomeço>. Sim, é verdade que você vai começar a estabelecer memórias, sentimentos e contratos neste ‘lugar novo’ e também ‘alguém novo’ vai surgir em você. Isso não me parece um REcomeço, não é uma repetição exata da tentativa fracassada anterior, tipo quando você morre no videogame, sabe? É uma continuação, é você seguindo a sua vida.
eu morri e não tem ninguém para enterrar o que sobrou – pouco, eu diria. como alguém morta pode ainda querer falar tanto? por que não me basta o silêncio do túmulo, a escritura da lápide, a solidão do caixão? enterrar a si mesma e velar uma vida desencontrada em mim. o choro é seco, mas a lágrima está escorrida, faz vincos fundos no rosto, traz sal aos lábios e mancha as páginas escritas. eu morri, mas ninguém soube do velório. é fato que era morte encomendada, eu já sabia que estava na mira mas queria fingir me proteger. eu morri e o pouco que sobrou não cabe no caixão e nem vale a cerimônia. o pouco que sobrou parece querer vagar pelo mundo dos vivos em busca daquilo que perdeu. mas não há o que recuperar. o que está feito, está feito. eu morri mas ainda não me calei. o sangue ainda pulsa forte dentro do que sobrou. como enterrar a si mesma e continuar a viver? (rascunhos do romance porvir – será? arquivo pessoal, 2022)
No romance Filha, de Nayara Noronha, temos três personagens que nomeiam as três partes do livro: Estela, Elena e Ester. A narrativa se desdobra a partir dessas figuras e dos acontecimentos da família: crescimento, fraternidade, distanciamento emocional, morte, trabalho, cidade natal, chegadas e partidas. Ao olhar distraído, poderia me fixar no óbvio: é um livro sobre luto – o que para muita gente seria também um livro sobre recomeços, como se todas as perdas incitassem um reset na vida do jeito que conhecemos para automaticamente instaurar um começar de novo. Como falei mais cedo, eu não acredito nisso. Então, o que leio nessa história são maneiras de continuar, é um olhar de lupa, um aumento minucioso dos afetos que explodem numa desgraça familiar: como cada pessoa faz para seguir viva, mesmo quando algo em nós está morto.
As crianças andando de patinete. Os corredores passando suados. Os cachorros buscando as bolinhas. Os jovens compartilhando um baseado. Os casais vagando de mãos dadas. As famílias empurrando seus carrinhos de bebê. Eu chorando. Ninguém reparou em mim.
(trecho de Filha, Nayara Noronha, editora 7letras)
O enredo de Nayara desdobra uma série de perdas e continuações das personagens e mostra como a vida se sobrepõe às nossas vontades – sem pedir licença, ela vai passar. Gosto da escolha de nomes das personagens, que me remetem origens antigas: Estela, do latim stella que significa estrela; Ester, rainha que possui um livro inteiro da bíblia para si e Elena, filha de Zeus, esposa de Menelau e motivo da guerra de Tróia. Gosto de pensar que os nomes das personagens inauguram uma percepção sobre elas: não serão coadjuvantes. Uma vez que cada nome conta uma história própria, podemos pensar que os <recomeços> são bestas e desrespeitosos, que não somos amadores nem principiantes: a vida de cada um é muito mais do que um acontecimento, do que uma história.
As minhas escolhas pela vida – que não poderia caber numa carreira profissional resumida no curriculum vitae – me atualizam no espaço-tempo <são paulo, abril de 2024>. Elas importam e estão presentes, quer eu queira ou não. É impossível ser inédita, pois ineditismo é uma coisa cafona que só uma autoestima delirante pode proporcionar. É mais provável viver pequenos episódios de <vale a pena ver de novo> do que protagonizar uma série de sucessos disruptivos. É biologicamente insustentável viver recomeçando, a gente sempre veio d’algum lugar, d’alguma coisa. Ao me lançar para o futuro, invariavelmente serei eu do passado, me atualizando na mínima medida. Por hoje, não me venha com imagens de fênix das cinzas. Eu tô é continuando.
Drops:
29/04, às 19h: Clube do Livro Quer Quer Ler com o primeiro livro de poesias do ano: Amor Recreativo, da Luiza Leite Ferreira. Inscrições e mais informações aqui!
Episódios de podcast:
Vinte mil léguas, o podcast que vê cientistas como escritores. Nessa temporada, Galileu Galilei!
Histórias sem fim, do meu podcast preferido
Em defesa do livro, com Jeferson Tenório e Airton Souza da Revista 451.
Edições de newsletter:
- também escreveu sobre listas e as dele são muito interessantes e complexas!
- numa carta de lascar sobre sua avó
Se gosta do que escrevo:
apoie continuamente através dessa plataforma
considere a assinatura paga
espalhe a palavra da news para sua rede
Um abraço e até a próxima edição,
paulamaria.
Como alguém que fez várias escolhas que sempre estiveram nessa nomeação de <recomeços>, adorei demais o seu texto, Paula! E concordo com você, a gente tá é continuando. Tem um sempre uma história, as coisas sempre vieram de algum lugar (por mais que possam parecer uma grande loucura pra quem não sabe da missa nem a metade).
Sobre as maneiras de continuar, lembrei muito do filme A vida invisível, você já viu? Ainda preciso ler o livro, mas acho que foi o filme que eu mais chorei na vida, lindo demais!
nenhum recomeço é como os que se joga no videogame, porque a gente nunca parte exatamente do mesmo ponto.