Como ser da poesia?
Estou dentro da minha própria mente. / Estou trancada na casa errada. (Anne Sexton)
Pareço calma – pareço? – mas sou calma como uma bomba. Peguei essa frase de um meme, que, escrita nas devidas circunstâncias, parece um poema. Escrever em versos é o formato de texto mais antigo que eu experimento. Não entendo como aconteceu, só sei que foi assim, diria Chicó. Outros parentes escreviam poesias, tipo meu avô paterno e uma tia-avó materna, mas quando criança eu ainda não tinha capacidade para ler ou entender aquela linguagem do começo do século passado. Poesia pode ou não ser erudita, pode ou não ter métrica e rima. Lembro de futucar a estante de livros em casa e encontrar antologias de Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Suas palavras não me pareciam rebuscadas e o aspecto enxuto do texto – sua mancha na página – me atraiu logo de cara. Escrever um livro de história parecia muito difícil, mas um poema era possível.
Acredito que a poesia como prática de escrita tenha aparecido daí. Ela brotou como possibilidade de texto, eu sempre soube que queria escrever. Sinto que o pedido das musas já persuadia meus dedos, como ecos do passado soprando em meus ouvidos: escreva. Eu ainda não sabia, mas o aedo (o poeta) canta para honrar a deusa Memória, irmã do deus do Tempo e mãe das Musas. O aedo é literalmente, aquele que canta – e cantar é narrar. Escrevo poesia a fim de revisitar meu passado, organizar seus fragmentos e narrar minha história. Fã incondicional da nostalgia, rearrajando o tecido de minha memória para compreender o processo da vida. Em grego, a etimologia de <nostalgia>: nóstos, retorno; álgos, dor ou sofrimento. O eterno retorno de Nietzsche, que poderia, com toda licença poética, ser a inescapável vontade de retomar o vivido, mas como somos impedidos pela brutal força do presente, vivemos em recorrências, que, embora parecidas, jamais serão iguais entre si. Então, na busca de reviver, quem escreve também finge ou, como definido nos versos inesquecíveis do poema Autopsicografia de Fernando Pessoa: O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente.
A moral do poema não depende de nenhum código, de nenhuma lei, de nenhum programa que lhe seja exterior, mas, porque é uma realidade vivida, integra-se no tempo vivido. E o tempo em que vivemos é o tempo duma profunda tomada de consciência. Depois de tantos séculos de pecado burguês, a nossa época rejeita a herança do pecado organizado. Não aceitamos a fatalidade do mal. Como Antígona, a poesia do nosso tempo diz: «Eu sou aquela que não aprendeu a ceder aos desastres.» Há um desejo de rigor e de verdade que é intrínseco à íntima estrutura do poema e que não pode aceitar uma ordem falsa. (Sophia de Melo Breyner Andresen)
Em composições poéticas clássicas, encontramos diversas formas, como sonetos, odes, elegias, hinos (dentre outras). Estas <fôrmas> perdem o sentido ao longo da história e mais precisamente entre o final do século XIX e o início do XX, com a primeira revolução industrial e os tempos modernos. As grandes cidades são abaladas brutalmente e as mazelas do capitalismo exibem seus dentes, alastrando-se tanto nas relações humanas quanto no uso do espaço urbano e na relação com a natureza. O Parnasianismo se corrói e a crise moderna se instaura. É bonito estudar como a Literatura é um registro da vida, independente do gênero (se prosa ou poesia, por exemplo) e mesmo antes da invenção escrita ou da imprensa. Você sabia que uma das obras mais conhecidas, lidas e estudadas no ocidente não foi composta de maneira escrita? Homero, autor de clássicos como Ilíada e Odisseia, compôs estes 30 mil versos oralmente e eles foram cantados ao longo dos séculos, até que os primeiros escribas os registraram, cerca de 1800 anos depois da existência do poeta. Os gregos adotaram a escrita tardiamente, aproximadamente 2.300 anos após os egípcios, e adaptaram o esquema de escrita dos fenícios, que, diferente dos egípcios, utilizavam uma escrita não pictogramática. Uma última curiosidade sobre o mundo grego antigo: nas Panateneias (a origem dos atuais Jogos Olímpicos) havia competições de recitação das obras de Homero, além das atividades em atletismo.
Escrevo essas considerações sobre os gregos para defender a importância da poesia, pois é devido a ela o início da literatura ocidental. A leitura desse gênero na atualidade é minoritária – a prosa reina na lista de leitores. Escrever poesia neste cenário se coloca como uma pergunta inquieta. Escrevo meus versos há mais de vinte anos, refinei a busca pelas palavras e me considero, em meio a crises e críticas, uma poeta. Mas fazer a poesia ser lida é um desafio incômodo. É comum ouvir que <poesia não é para mim> ou <eu não entendo>. Quando conquistamos leitores, a vida útil de um livro é minúscula. Meu último livro, que acaba de completar seis meses de lançamento, já parece velho. Escritores de prosa também são cobrados por novos lançamentos, claro. Mas seus livros são mais conhecidos, mais lidos, mais circulados e mais longevos. Na exposição sobre Maria Bethânia no Itaú Cultural, ouço a mestra dizer que poesia não serve para dormir, então entendo que poesia não é para acomodar e talvez por isso também provoque distância e até um pouco de medo. Escrevo poesia para contar sobre meus sonhos, fantasias e também meus pesadelos, tudo aquilo que em mim perdura. Na poesia, tenho permissão de seguir minhas obsessões e, como Ferreira Gullar, não tenho plano de vida, sou um improviso permanente. Na poesia, restauro o sentido da vida, que desmorona a cada evento – sucessivos, intermináveis. Ou, nas palavras de Arnaldo Antunes: procuro o muro do poema demolido em mim. Calma como uma bomba¹.
¹ - também é o título de uma música do Rage Against the Machine
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Em abril, o Clube do Livro Quer Quer Ler terá o primeiro livro de poesias do ano: Amor Recreativo, da
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Ruptura, abandono e mudança no
Mulheres homicidas, Anatomia de uma queda e Ana Mendieta por
Memória, palavra e ditadura militar no Brasil, num artigo de Juliana Mantovani
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Um abraço,
paulamaria.
Adorei esse texto, eu mesma tenho estado cada vez mais próxima da poesia (como leitora). Comprei o Amor Recreativo e não sabia que era poesia, me surpreendi ao abri-lo e gostei muito - estou lendo e relendo! 💛
eu escrevia muita poesia quando mais novo, mas agora tenho achado cada vez mais difícil.