Como é ser uma garota?
🎶You pretend you're high / Pretend you're bored /You pretend you're anything /Just to be adored /And what you need /Is what you get (stupid girl - garbage)
Eu não me sentia como Robert em relação a Warhol. Seu trabalho refletia uma cultura que eu queria evitar. Odiava aquela sopa e não ligava para a lata. Eu preferia um artista que transformasse o seu tempo, não que o espelhasse. (Patti Smith)
No mês de março, as cartas serão temáticas. Dia oito é dia internacional da mulher e convoquei colegas de newsletter para escrevermos sobre o tema, livremente, cada pessoa à sua maneira. Hoje, uma reflexão sobre ler mulheres dos nossos tempos.
Cheguei na idade em que o bordão ‘mas no meu tempo não era assim’ aparece sem esperar. Não sou uma tia cheia de sobrinhos, não tenho prole e nem mesmo convivo com crianças ou adolescentes com frequência. A internet 3.0 me põe a observar o mundo dos jovens e me sentir obsoleta, e, por outro lado, com desejo quase incontrolável de fazer as coisas do meu jeito porque ninguém vai viver a vida por mim. E sabe o mais curioso desse texto de hoje? É que o parágrafo que abre a carta estava escrito há semanas, antes das jovenzinhas de uma faculdade particular espalharem um vídeo etarista na internet.
Uma balzaquiana nos anos 2020 infelizmente tem questões muito parecidas com as balzaquianas das décadas anteriores. É preciso fazer tudo antes de envelhecer e a velhice chega rapidamente – aparentemente só servimos até os vinte e poucos, então, temos o intervalo da adolescência e os 25+ para ter consciência de si, construir uma persona, escolher uma profissão, arrumar um par, investir na carreira, engravidar, decorar uma casa, fazer uma pós-graduação (duas ou três), manter um corpo saudável, escrever um livro, plantar uma árvore e sair na Forbes under 30. Aqui não deu. E agora?
São Paulo, outubro de 2016. Livraria Cultura, Conjunto Nacional, Avenida Paulista. Um livro roxo, com ilustração em branco e laranja me chama a atenção. As águas-vivas não sabem de si,
. Hipnotizada pelo desenho na capa e pelo título do livro, lembrei da água-viva de cristal que ficou na prateleira da lojinha do museu dias antes. Então, antes do novo arrependimento, compro um exemplar. Em 2016, tenho 30 anos e, durante a leitura, nos mergulhos com Corina, muitas vezes me senti sufocada, largando o livro com medo. Retomei a leitura porque sabia que estava aprendendo com aquele submarino que ia cada vez mais fundo, em busca de algo que não tinha forma, mas que teve som. Foi o primeiro livro de uma contemporânea – de época e geração – que li, e a partir dali, meu entendimento sobre mim mesma se transformou.Sempre fui uma boa leitora, por gosto e costume, cresci lendo autores clássicos pretendidos como literatura universal, que pouco dialogavam comigo, provavelmente por serem, em sua maioria, escritos por homens de outros tempos. Nos primórdios da internet, não engajei em fóruns de fanfic como muitas garotas da minha geração, o que poderia ter me dado um certo alívio adolescente ao ler histórias mais reais e escritas por pessoas da minha geração. Mesmo sem encontrar um acolhimento total, segui insistindo nos livros, meus fiéis companheiros. Já na faculdade, a grande parte dos teóricos que estudei eram também homens brancos e europeus, alguns mais descolados, como os esquerdomachos franceses, com suas palavras bonitas e o apaixonante devir. Mas eu sabia que não era suficiente. Tudo aquilo me parecia genérico frente o que eu sentia e observava do mundo. E tenho pavor de coisas genéricas. Demorou muito tempo e precisou de esforço e insistência para que autoras fizessem parte da minha formação como leitora, como psicóloga e como escritora. Não deveria ser tão difícil assim.
Santo Antônio do Pinhal, agosto de 2022. Feira Literária da Mantiqueira. Um livro cor-de-rosa com letras roxas: se deus me chamar não vou, Mariana Salomão Carrara. Numa mesa sobre estratégias narrativas, observei Mariana e quando voltei com o livro rosa para casa, engoli as páginas com o vigor de uma pré-adolescente de 11 anos, com fome de tudo, como Maria Carmen, como eu em 1997. Lembra daquele sentimento quem-sou-eu que nasceu lá na adolescência? Aquele bololô de pensamentos confusos, angústias, sofrências e conversas pra mais de metro com colegas na busca incessante por uma forma de estar no mundo? O tipo de sentimento que continua aparecendo por muito tempo, talvez pela vida inteira.
Não é à toa que esse caminho foi difícil. Mulheres na literatura – e nas artes em geral – têm sua entrada dificultada, atrapalhada e desestimulada. Eram poucos os livros de autoras mulheres que li na infância, poucos na adolescência e assim o ciclo se repetiu até quase meus trinta anos. Artistas visuais mulheres não ocupavam as exposições ou os grandes salões de museus que visitei quando criança, os nomes que decorei eram, quase todos, de homens. Algo se salva nesse caminho – ufa! Na música, pude conhecer grandes cantoras e bandas lideradas por mulheres e essa presença foi fundamental no meu desenvolvimento cultural e também afetivo. Imagina aprender sobre o amor apenas pelas letras escritas por homens? O amor só é bom se doer my ass, Vinícius.
"As mulheres são uma força que me dobra, não só ao meio, mas em todas as bordas. Sinto que meu corpo todo é origami quanto estamos juntas, cada pedaço meu dobrando em resposta a não saber muito bem o que fazer, e mesmo sendo uma mulher adulta ainda me pego nervosa ou um pouco perdida quando estou perto de uma mulher que admiro, porque foram muitos anos admirando homens que não tinham lá tanta coisa para se admirar, mas eu era muito boa em criar ficções e aglutinar uma a uma aos corpos masculinos. É uma outra linguagem, como se eu tivesse evoluído muito, como se eu tivesse aprendido, e aprendi, a me amar a cada vez que amo tão intensamente uma mulher." ("Flor de Gume", Monique Malcher)
O episódio das jovens que ridicularizaram a colega de classe de 40 anos na faculdade expõe os nossos tempos: a necessidade de compartilhar coisas sem pensar nas consequências; o espaço virtual como um circo de horrores onde se ridiculariza pessoas sem punição; a falta de conexão de jovens com a realidade social. Entendo a busca de pertencimento da juventude, que hoje é afetada intensamente pelo uso das redes sociais, pela ultra-exposição e viralização de qualquer tipo de conteúdo. Destacar-se em meio a uma corrente esmagadora de pessoas que se sentem ‘alguém’ quando enxergadas por outros. Quase vinte anos pós adolescência, esse sentimento segue me acompanhando, ora com mais força ora com mais suavidade. Cuido dele com doses generosas de música e literatura, principalmente por artistas e escritoras do meu tempo, que me dão a mão e desenham ao meu redor um contorno de conforto e sentido que me permite prosseguir.
Não posso dizer com certeza que ‘no meu tempo não era assim’ porque no meu tempo era tudo diferente e talvez eu realmente pensasse que os 40 não eram idade para uma mulher chegar à faculdade – essa era a idade dos meus pais, adultos ‘plenos’. Não consigo me lembrar do que eu pensava que deveria ser uma mulher aos 40 naquela época, diferente dessas garotas, não tenho registro – uma pena e um alívio. O que me lembro era de me sentir obrigada a me adequar, desde àquela idade, ao que esperavam de mim: ser uma garota que não incomoda, que obedece, que responde corretamente, que é admirada pelas coisas de menina, que não era como as outras garotas. Queria que alguém tivesse me dito que isso era uma besteira, porque pior do que achar que uma mulher aos 40 não pertence a um lugar como a faculdade, é a necessidade de se apagar para tentar conseguir pertencer e não entender que não existe este lugar. Por isso, além de ler mulheres do meu tempo, eu escrevo.
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um abraço e até a próxima edição,
paulamaria.
Que beleza de texto! Fiquei tão feliz de saber como foi que entrei na sua história, e que essa conexão trouxe tantas outras depois <3 Quanto a questão de envelhecer, sinto que os anos que acumulo são meus grandes aliados. É mais tempo para aprender, para desenvolver minhas habilidades, minha paciência, e poder deixar para trás sentimentos que faziam sentido quando eu era mais jovem, como esse desespero por pertencer, e que hoje já não são minha prioridade :) Vamos juntas, querida. O caminho à nossa frente é longo!
É incrível como somos iguais nessa pressão por sermos ~diferentes, nos destacarmos pra alcançar um ideal de mulher que é completamente fabricado (por homens, sem dúvida). Eu passei a adolescência lendo romances jovens e jovem adulto da Meg Cabot, e embora as personagens conversassem com a minha idade, as minhas questões, a cultura era completamente diferente, assim como a dos filmes que eu assistia. Mesmo quando passei a ler mais mulheres, eram mulheres clássicas e mortas há muito tempo, de contextos ainda mais distantes do meu - Jane Austen, Charlotte e Emily Brontë.
A mudança veio quando li Crônica de uma namorada, Zélia Gattai, presente de um namorado que adorava vasculhar sebos. Embora a história se passe nos anos 50, me identifiquei demais com a protagonista de 13 anos, naquele momento crucial onde se deixa a infância e entra na adolescência com a chegada da menstruação, em que o primeiro amor passa a ser mais importante que as brincadeiras de casinha.
Mas isso foi lá nos 18 anos e mesmo depois eu custei a encontrar autoras contemporâneas que falem sobre a minha realidade, a minha vivência. Acho que foi lendo o caderno e as memórias de Tainá e Kênia em Cidades afundam em dias normais que percebi como fez falta (e ainda faz!) ler referências sobre o meu mundo, histórias de mulheres que habitaram e habitam o mesmo tempo que eu. Tenho sede de ler mais e mais mulheres contemporâneas (como você) e me reconhecer nas angústias que nos unem.