A Ernest Hemingway é atribuída autoria de uma trinca de versos (replicada à exaustão na internet): Quem estará nas trincheiras ao teu lado?/ E isso importa? / Mais do que a própria guerra. Dele, de autoria comprovada, li apenas O velho e o mar e pouco me recordo. Mais recentemente, zapeando numa televisão de hotel, me deparei com um documentário Ernest Hemingway: quatro casamentos e um funeral, que faz um apanhado sobre seus relacionamentos amorosos mais marcantes, a participação como correspondente na Guerra Civil Espanhola, o isolamento em Cuba e sua trágica morte. Ao final do filme, entendi a atribuição de autoria para os versos acima. Um homem que viu e viveu horrores, que experienciou céus e infernos, que reuniu forças e teve a capacidade de escrever apesar de tudo. Para mim, só pode ser porque durante a longa e dura caminhada, ele não esteve sozinho.
No último domingo – o primeiro deste ano! – Fernanda Torres ganhou o prêmio de melhor atriz de drama no Globo de Ouro, evento anual promovido desde 1944 pela Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood. Entre memes, comemorações de final de copa do mundo e muita emoção, uma coisa chamou mais a atenção da torcida. Atrás de Fernandinha surpresa se levantando para subir ao palco e agradecer ao prêmio vemos Selton Mello de olhos arregalados e queixo caído. Em diversos outros <cortes> de vídeos e fotos, também vemos a expressão legitimamente emocionada do ator admirado com o feito da amiga, com quem contracenou inúmeras vezes e também no filme que a premiou naquela noite – Ainda estou aqui. Num desses vídeos que rapidamente surgem nas redes sociais, com abraço, comemoração, choro, brinde entre Selton e Fernanda, alguém perguntava: quem é o seu Selton Mello?
Também no último domingo (registro a data: 05 de janeiro de 2025), um dos meus programas de televisão favoritos completou quarenta e cinco anos. Queridinho nacional, campeão de audiência invicto há décadas, o Globo Rural mostra o Brasil de cabo a rabo, infelizmente do agronegócio ao agroecológico e responde às dúvidas mais inimagináveis do povo que vive do que os animais e a terra dão. No episódio festivo, a homenagem se voltou aos agricultores da transumância da Cordilheira do Espinhaço em Minas Gerais. Conhecidas também como <panhadeiras>, são consideradas patrimônio agrícola mundial pela ONU. Centenas de famílias sobem e descem montanhas, andando quilômetros diariamente e juntando flores que se mantém jovens: as sempre-vivas. Homens e mulheres que passam meses ao abrigo de lapas, pequenas casas construídas junto às pedras do cerrado, passadas de geração em geração e que além de quem colhe, acolhe os ramos de flores até seu ressecamento ideal para a comercialização. Quando devidamente preparadas, mantêm o aspecto de quando foram colhidas: é como se não morressem, como se preservassem o germe da vitalidade: resistem.
2024 esgarçou as fronteiras das emoções, me pôs à prova do que achava que sabia sobre mim, sobre meus limites e forças, sobre o futuro e minhas expectativas. Vi o lado mais feio do impossível quando perdi uma das pessoas que mais amo e através do buraco dessa fechadura, enxerguei portas pelas quais eu não queria ter que passar, mas tive. Entendi profundamente pessoas que não conheço e com quem nunca troquei palavra alguma – em pensamento viajei e toquei seus corações com meu desamparo e em troca me devolveram coragem para prosseguir. Nas guerras pessoais, não sabemos o que é trincheira, o que é búnquer, quem são os aliados ou quem são os inimigos – tudo isso se constrói em combate. Quando me deparei com a pergunta <quem é seu Selton Mello?>, não titubeei. Minha mente trouxe ao coração a calma da sonoridade de alguns nomes e os repeti em voz alta, para não me esquecer que não estou só. Acredito que a amizade é coisa que só vinga se cultivada, não tem jeito, não existe amor que resista ao abandono. O bom preparo, o cuidado de idas e vindas, a espera, o espaço reservado, a admiração. Como sempre-vivas, as amizades habitam as estantes mais preciosas do corpo-casa. Ali estão amostradas para quem quiser ver porque tenho orgulho de ser quem sou, pois sou porque elas estão: nas trincheiras, nos campos, nas estantes.
Drops:
O filme sobre Ernest Heminway
O velho e o mar numa edição lindíssima
10 poemas sobre amizade
A história das sempre-vivas no Brasil
O episódio de 45 anos do Globo Rural
As políticas públicas para quem faz as sempre-vivas viverem
Edições de newsletter lidas na primeira semana do ano:
Comece um projeto pessoal com a
Tormenta da
Uma playlist sobre amizade:
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um abraço,
paulamaria.
sou tão grata por ter você entre as pessoas incríveis que são meu Selton Mello...
Linda a sua reflexão. Caiu como uma luva pra mim que, morando lonnge do Brasil, reavalio muito das minhas relações.