É domingo de Páscoa. Quer dizer, hoje ainda é sábado, o tal de aleluia, chamado assim pelos cristãos para marcar a noite de vigília para a ressurreição de Jesus Cristo que acontecerá no domingo. Uma história repetida há uns milanos, que faz sentido para parte da humanidade e para outra, nenhum. Cresci numa família católica praticante, que leva muito a sério esse negócio de Páscoa. E de morte também - haja velório e enterro pra estar presente. Mas, de alguma maneira, eu percebo que apesar de celebrar o renascimento de cristo todo santo ano, lidar com o famigerado e inevitável fim da vida não é uma tarefa fácil para quase ninguém.
Morte é substantivo feminino em português, em espanhol e francês também. No México a Santa Muerte nasce do sincretismo entre o catolicismo colonial e culturas originárias mesoamericanas, figura feminina cultuada e celebrada nas famosas festas que ocorrem anualmente no dia 02 de novembro. Minha poeta favorita costumava escrever sobre a Sra. Morte através de declarações de amor. Tais declarações se apresentam como maneira de compreender sua própria existência. Ao tentar conhecer mais a Sra. Morte, construía para si uma espécie de caminho para a própria redenção, a entrega ao romance com a sombria senhora poderia ser então menos dolorosa e desconhecida. Quem sabe, apaziguar o pavor do desconhecido que o final da vida nos traz. Romancear, celebrar, construir.
II
Demora-te sobre a minha hora.
Antes de me tomar, demora.
Que tu me percorras cuidadosa, etérea
Que eu te conheça lícita, terrena
Duas fortes mulheres
Na sua dura hora.
Que me tomes sem pena
Mas voluptuosa, eterna
Como as fêmeas da Terra.
E a ti, te conhecendo
Que eu me faça carne
E posse
Como fazem os homens.
(Hilda Hilst em “da morte, odes mínimas”)
Há um ano, no entanto, não é com essa imagem da morte que estamos lidando diariamente. A pandemia trouxe num cavalo desgovernado e veloz, a morte sem rosto, de capa preta e foice afiada em riste. Em contraste com a Sta. Muerte, florida e celebrada, a morte sem rosto aguarda o momento da distração, da falta de cuidado, da aglomeração em nome da saúde mental, para invadir nossos corpos e violentamente tirar nosso ar.
Já não uma senhora que faz companhia e com quem trocamos confidências apaixonadas. Essa morte, invasora que ceifa vidas, tem o rosto do mal, tem a voz da impunidade, tem o cheiro de podridão da história brasileira marcada pelo genocídio desde seu início. Não há espaço para que chegue com serenidade e confiança e nos carregue com delicadeza no momento do fim. O fim já não tem horizonte. Perdemos o horizonte. Da porta pra fora de casa, tudo parece uma oportunidade para que a história seja brutalmente interrompida.
Escrevo este texto na esperança de conseguir enxergar a Sta. Muerte novamente, eu sei que ela está por aí apesar de todas as circunstâncias. Me recuso a acreditar que somos reféns da irmã malvada e de seus capangas que estão no poder. Preciso acreditar, como se acredita na ressurreição do domingo de Páscoa, que é possível reestabelecer uma ligação com a Santa Muerte, e ao lembrar que estamos vivos, também olhamos no espelho da morte. Precisamos conversar com ela, a fim de que ela nos guie neste momento tão duro, de tanto abandono, de tanto sofrimento sem estanca.
“Morrer é uma nova maneira de estar no mundo. Um fim estabelece uma relação entre nós mesmos e o desconhecido” (Stanley Keleman em “viver o seu morrer”)
A vida é impermanente e é essa sua premissa, mas eu sei que você, assim como eu, está cansada de viver em constante ameaça. Impermanência não é ameaça, impermanência é movimento… Desejo que você aí do outro lado possa acolher a impermanência e dar espaço também a ela. Desejo que o medo não tome conta de todos os seus lugares, que dentro de você ainda existam faíscas de conexão com o que produz sentido. Que haja amor para curar as dores. Que haja tempo para não sufocar a existência. Que haja rituais para fazer passagens necessárias. Que possamos construir um pouco de possível, a cada dia, até o inevitável fim.
Ditadura nunca mais;
Se você ainda usa tumblr, pode gostar dessa curadoria aqui;
Um abraço e nos vemos na próxima edição,
paulamaria.