Caderno de anotações [005]
Amores e perdições: "Romeu + Julieta" encontra Camilo Castelo branco - edição extra aberta!
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Estou de férias na casa dos meus pais. Vila Velha é uma cidade pequena e cheia de histórias e fofocas sobre as famílias que por aqui se instalaram e contribuíram para o desenvolvimento do município. Toda visita aprendo um pouco mais sobre as personagens icônicas do tempo dos meus pais e também me atualizo sobre os colegas da mesma geração que eu. É nesse clima de histórias, fofocas e intrigas que trago para vocês um trabalho que adorei escrever neste semestre. No curso de Literatura Portuguesa II, apresentei um breve comentário comparando o filme Romeu + Julieta com a novela portuguesa Amor de Perdição. É meu presente de final de ano para vocês. Obrigada pela companhia durante esse ano tão desafiador, ser lida é uma honra inenarrável. Desejo um 2025 com muita saúde e amor pra gente. <3
A intenção do presente trabalho é brevemente discutir as similitudes entre o romance Amor de Perdição1 de Camilo Castelo Branco e o longa metragem Romeu + Julieta2 de Baz Luhrmann. O filme, quase homônimo da peça shakespeariana Romeu e Julieta, traz a mesma dinâmica trágico-romântica da história fonte, porém ambientada na contemporaneidade. O romance de Camilo apresenta toques shakespearianos numa versão portuguesa de história de um amor quase impossível, também marcada por brigas violentas entre famílias, desencontros e desfecho trágico.
O primeiro ponto a ser ressaltado é a diferença de gêneros textuais (Faraco, 2006) entre as obras. Amor de perdição é um romance (ou novela)3em registro escrito, o livro; já o filme é realizado a partir de um roteiro adaptado da peça de William Shakespeare. Contudo, estão situados num mesmo conteúdo temático, ou seja, ambos contam uma história ficcional, de mesmo teor trágico-romântico, ambientados em seu tempo de realização e com estruturas narrativas semelhantes, principalmente o que tange aos personagens e conflitos.
A fim de esclarecimentos, a escolha pelo termo “trágico-romântico” se dá a partir da acepção do teor dessas histórias, que versam sobre o apaixonamento e sobre os impasses violentos no desenrolar das narrativas — e por isso, de inclinação à tragédia. Tanto Romeu e Julieta de Shakespeare quanto Amor de Perdição de Camilo são consideradas obras de transição entre as antigas histórias de cavalaria para o romance burguês moderno, cada um à sua maneira — pois se situam em períodos históricos distantes. Conforme Mulinacci (2008), o romance surge
Para dar voz ao moderno e ao seu novo protagonista, o indivíduo, exilado no silêncio de uma realidade que deixou de falar a língua transparente do universo épico e cujo significado tem, pois, de ser procurado numa quête aventurosa através da experiência, antes de aprender, progressivamente, que a procura coincide com o seu destino, ou melhor, o destino é a procura sem fim. Mas o romance é também o gênero que pode devolver a voz do mundo antigo, já incapaz de se fazer ouvir (e, acima de tudo, compreender) senão sob aquela forma bastarda, fruto de uma contaminação com os sons familiares de uma episteme secularizada pela civilização burguesa, isto é, englobada na esfera dos seus valores. (Ibiden, p. 197-198).
Cabe retomar, no entanto, que a obra utilizada neste trabalho não foi o livro de Shakespeare, mas sim sua adaptação no filme Romeu + Julieta, realizado através de roteiro cinematográfico da peça teatral inglesa. Dirigida e roteirizada por Baz Luhrmann e Craig Pearce, é ambientado na fictícia Verona Beach, local onde as famílias Capuleto e Montéquio são rivais e tem impérios empresariais. As ruas são cenários de brigas constantes dessas famílias, quase sempre intercedidas pela polícia local, que a fim de manter o equilíbrio entre os interesses econômicos da cidade, não toma partido de nenhum dos lados.
Tendo em vista que as personagens do filme se comportam de maneira muito parecida com o romance shakespeariano, partiremos então para a análise. Em Amor de Perdição, Simão e Teresa, protagonistas da história, são dois jovens vizinhos que se apaixonam perdidamente. No longa, Romeu e Julieta se conhecem ao acaso, pois Romeu entra disfarçado num baile de máscaras oferecido na casa Capuleto, e, à primeira vista, se apaixona de maneira fulminante pela jovem anfitriã. Contudo, o destino de ambas as jovens já estava definido por suas famílias: o pai de Teresa havia prometido sua mão ao primo Baltasar, e o de Julieta, a um rico parente, Páris. Tal situação é insuportável para as duas, não apenas porque estão apaixonadas por outros meninos (aqui eram todos adolescentes), mas também porque o mando violento dos pais silenciava suas vontades e poder de decisão diante da própria vida.

Pelo lado dos mocinhos, Romeu e Simão também têm outras pretendentes. Simão, após fugir de uma peleia com Baltasar, se esconde na casa do ferreiro João da Cruz e por lá conhece sua filha Mariana, que se apaixona loucamente pelo jovem, que jamais corresponde à sua persistente e fiel investida. Quando conheceu Julieta, Romeu ainda era apaixonado por uma moça chamada Rosalina, que não aparece no filme, apenas é mencionada por Frei Lourenço, amigo de Romeu que se espanta com a repentina mudança de ares do rapaz. É Frei Lourenço que faz o casamento dos dois e que se encarrega de ser mensageiro do romance, em parceria com a Ama de Julieta. Em Amor de Perdição, o casal conta com a infinita devoção de Mariana ao ferido Simão e com a irmã de Simão, que muito se afetuou a Teresa e desenvolveu com ela uma verdadeira amizade.
Sobre a forma desenvolvida em cada história, ou seja, a construção estética do autor de acordo com a intenção planejada, Amor de perdição, em vez de se apoderar da tradição trágica, se limita a reinterpretá-la dentro dos códigos de uma sensibilidade nova, fazendo desse ato de interpretação uma “tradução”, ou seja, uma efetiva traição do espírito da tragédia (Mulinacci, 2008, p. 200). Acerca da estética empregada no longa Romeu + Julieta:
a adaptação de Luhrmann leva a transtextualidade ao extremo, fazendo uso de citações de outras obras de Shakespeare para criar um mundo que vai além das câmeras e que justifica visualmente a escolha por manter a linguagem do texto de partida, que poderia soar antiquada para o público contemporâneo. Para Malone (2012), os significantes, não só verbais, mas também visuais e musicais completam a construção desse mundo, envolvendo o espectador em várias camadas de significação, sejam elas facilmente perceptíveis ou não (Cataldi, 2016, p. 14).
Outra semelhança observada entre as obras é a aproximação de ambas com a narrativa shakespeariana através de elementos narrativos, ora explícitos, como a rivalidade entre famílias e a “correspondência de figuras e episódios”4em Amor de Perdição, ora através de uma transposição contextual a fim de produzir o sentimento de época, ainda que em momentos históricos diferentes, como em Romeu + Julieta:
Para fazer isso, Luhrmann e sua equipe pesquisaram incansavelmente o período elisabetano para depois transformá-lo em linguagem cinematográfica. Combinado a esta pesquisa, Luhrmann (apud RYAN, 2014) diz que tentou interpretar a obra através de imagens do século XX da mesma forma que Shakespeare o faria, com o objetivo de “encontrar uma maneira de comunicá-la para uma audiência contemporânea” (apud RYAN, 2014, tradução minha). A Verona Beach de Luhrmann é, segundo Malone (2012), um mundo construído exatamente de dentro do texto que o diretor é criticado por descaracterizar, e, ao mesmo tempo, traz todos os elementos presentes na sociedade do fim dos anos 1990: uma mídia que assola os sentidos com informações constantes e desenfreadas; um consumismo opressor, que prega o individualismo e resulta, ironicamente, em cada vez menos individualidade; além da violência urbana e do conflito de gerações (Cataldi, 2016, p. 17).
Nesse sentido, as obras aqui discutidas acertam em cheio suas preocupações. Ao invés de versões mal acabadas do clássico de Shakespeare, apresentam, às suas maneiras, um interessante recorte de seus momentos históricos. A linguagem, os cenários, as relações sociais, os papéis de gênero, as instituições, as ruínas de tempos de transição: tudo está posto, seja através do enredo, das personagens ou da estilística escolhida, tanto por Camilo quanto por Luhrmann. Segundo Mulinacci (2008, p.209), o romance português “transcodifica a forma trágica para torná-la compatível com o mundo moderno e a civilização burguesa; o trágico que se faz estrutura narrativa e se dissipa, deixando tão-só os restos (e os rastos) de seu recalque inacabado”. Para Cataldi (2009), que analisou a atualização iconográfica dos personagens shakespearianos através do longa-metragem, “a adaptação de Luhrmann trabalha a relação dualística entre o indivíduo e a sociedade, trazendo à tona várias questões relevantes para a contemporaneidade de seu público, como o hibridismo cultural, a desigualdade de classes, o abismo entre pais e filhos e o isolamento social, dentre vários outros flagelos urbanos”, sem que com isso a obra fonte seja esvaziada, mas que através dela, possa se olhar, ao mesmo tempo, para o passado e para o presente.
1 Editora Ática, 1983.
21996
3 Mulinacci, 2008.
4“A referência ao dramaturgo inglês, obviamente, não é nada casual nem inédita, sendo tão evidentes os paralelismos entre os dois textos, a partir da rivalidade das famílias dos namorados (os Albuquerques e os Botelhos) para chegar a certas correspondências de figuras e episódios (de João da Cruz-Mercutio ao assassínio de Baltasar-Tybalt) (Mulinacci, 2008, p.201)”.
REFERÊNCIAS
BRANCO, Camilo Castelo. Amor de perdição. São Paulo: Editora Ática, 1983.
CATALDI, Safira Pedreira. Do Bardo a Baz: a transcriação de Romeu e Julieta em ícones dos anos 1990. 2016. 40 f., il. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Letras – Tradução – Inglês) — Universidade de Brasília, Brasília, 2016. Disponível em: https://bdm.unb.br/bitstream/10483/17846/1/2016_SafiraPedreiraCataldi_tcc.pdf Acesso em: 29 out. 2024
FARACO, C.A. Linguagem & diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin. Curitiba: Criar, 2006. p. 108-123.
MULINACCI, Roberto. Romeu não mora mais aqui (e nem Julieta). Amor de perdição, a morte e a questão do trágico moderno. Revista SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 12, n. 23, p. 192-213, 2º sem. 2008. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/6160214.pdf. Acesso em: 28 out. 2024.
WILLIAM Shakespeare’s Romeo + Juliet. Direção: Baz Luhrmann. Roteiro: adaptado da peça Romeu e Julieta, de William Shakespeare, por Baz Luhrmann e Craig Pearce. Distribuição: 20th Century Fox, 1996. Cor, 120 min.
Drops:
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paulamaria.