Apneia nossa de cada dia
šRespirei fundo e escutei a velha fanfarronice do meu coraĆ§Ć£o. Existo, existo, existo. (Sylvia Plath)
Foi domingo de PĆ”scoa semanas atrĆ”s e apesar de hoje eu nĆ£o ser uma pessoa religiosa, minha famĆlia Ć© tradicionalmente catĆ³lica e os ritos do feriado marcaram eventos durante dĆ©cadas na minha vida. Fui, inclusive, uma apĆ³stola em encenaĆ§Ć£o da cerimĆ“nia do lava-pĆ©s, na qual o celebrante ā o padre ā faz como Jesus o fez milĆŖnios atrĆ”s e lava e beija os pĆ©s dos fiĆ©is, reencenando a histĆ³ria bĆblica que ensina sobre humildade e perdĆ£o e que anuncia o porvir trĆ”gico do lĆder cristĆ£o, morto uma semana depois. Uma histĆ³ria repetida tantas e tantas vezes ao longo dos sĆ©culos, que faz sentido para parte da humanidade e para outra, nenhum. E que debate, ainda que Ć guisa da fĆ©, sobre a morte e como o famigerado e inevitĆ”vel fim da vida nĆ£o Ć© uma tarefa fĆ”cil, nem para Jesus e nem para nĆ³s.
Morte Ć© um substantivo feminino em portuguĆŖs, espanhol e francĆŖs. No MĆ©xico, a Santa Muerte Ć© uma figura sincrĆ©tica, fruto do catolicismo colonial misturado Ć s culturas originĆ”rias mesoamericanas. A Santa Ć© uma imagem feminina cultuada ainda atualmente e Ć© celebrada em grandes festas que ocorrem tradicionalmente no dia 02 de novembro ā nosso dia de Finados no Brasil. Na FranƧa, comemora-se o dia de Todos os Santos, ou Toutssaint, em 01Āŗ de novembro e honra-se todos os santos, conhecidos e desconhecidos. Ambas as datas tem origem no calendĆ”rio litĆŗrgico cristĆ£o e, podemos dizer que se dirigem a um mesmo fim: celebrar, rezar e interceder pelas almas no purgatĆ³rio, afim de ajudĆ”-las a obter a bem-aventuranƧa celestial.Ā
Chamo atenĆ§Ć£o para o substantivo feminino porque me encanto pela poesia escrita sobre a Santa Muerte. Minha poeta favorita costumava se debruƧar sobre sua relaĆ§Ć£o com a morte em seus poemas, muitas vezes atravĆ©s de declaraƧƵes de amor ā talvez uma maneira de compreender sua prĆ³pria existĆŖncia e finitude. Ao tentar conhecer melhor a Sra. Morte, construĆa para si uma espĆ©cie de caminho para a prĆ³pria redenĆ§Ć£o, a entrega ao romance com aquela sombria senhora poderia amenizar a dor do desconhecido fim. Quem sabe, ao por em palavras suas imagens e sentimentos com a finitude, apaziguasse o pavor e o assombro da interrupĆ§Ć£o da vida. Assim como nos rituais de fĆ©, contadas por histĆ³rias de povos longĆnquos e repetidas ao longo dos sĆ©culos, escrever poemas tambĆ©m Ć© romancear, celebrar, construir a vida ā que segue, Ć nossa revelia, em direĆ§Ć£o ao fim.
VII
PerderƔs de mim
Todas as horas
Porque sĆ³ me tomarĆ”s
A uma determinada hora.
E talvez venhas
Num instante de vazio
E insipidez.
Imagina-te o que perderƔs
Eu que vivi no vermelho
Porque poeta, e caminhei
A chama dos caminhos
Atravessei o sol
Toquei o muro de dentro
Dos amigos
A boca nos sentimentos
E fui tomada, ferida
De malassombros, de gozo
Morte, imagina-te.
(āDa morte. Odes mĆnimasā, Hilda Hilst)
No livro āExiste, existo, existoā, Maggie OāFarrell conta dezessete histĆ³rias de quase morte, vividas e sobrevividas por ela. Assalto, aborto, afogamento, ameba, alergia. Motivos banais e outros rarĆssimos, de tudo acontece na vida de Jenny, como na vida de todos nĆ³s, se enxergarmos com uma lupa generosa e paciente. DescriƧƵes adjetivas gostosas como āo ruĆdo das minhas sandĆ”lias esmagando o cascalho, o grito das gaivotas, o zunir dos ventos (ā¦)ā em relatos difĆceis de revelar a quem lĆŖ, fazem o decorrer dessas histĆ³rias, com seus pesos e medidas tĆ£o singulares, ser leve o bastante para deixar uma marca quase boba, quase como uma tatuagem que saiu de moda, com letras cursivas, no punho do braƧo do relĆ³gio: carpe diem.
Fazemos o que temos que fazer para sobreviver; como espĆ©cie, somos criativos em face da adversidade. Robert Frost disse: A melhor saĆda Ć© sempre atravĆ©s, e acredito que isso seja verdade, mas, ao mesmo tempo, se vocĆŖ nĆ£o conseguir atravessar, sempre Ć© possĆvel dar a volta. (Existo, existo, existo: dezessete tropeƧos na morte, Maggie OāFarrell)
Que a morte sĆ³ nos tome numa determinada hora, nem antes ou depois. Reescrevo este texto dois anos depois da sua primeira versĆ£o, nascida na pandemia, em que estive tomada, por um longo tempo, pelo reflexo do susto, paralisada de medo de morrer ou de perder quem eu amo. ConstruĆ, junto ao encontro com a arte, em especial, uma centelha de esperanƧa em conseguir enxergar a Sta. Muerte novamente sem pavor. Como se acredita na ressurreiĆ§Ć£o no domingo de PĆ”scoa, precisei reestabelecer uma ligaĆ§Ć£o com a morte, como o lembrete da prĆ³pria vida.Ā
āMorrer Ć© uma nova maneira de estar no mundo. Um fim estabelece uma relaĆ§Ć£o entre nĆ³s mesmos e o desconhecidoā (āViver o seu morrerā, Stanley Keleman)
A vida Ć© impermanente e Ć© essa sua premissa. ImpermanĆŖncia nĆ£o Ć© ameaƧa, impermanĆŖncia Ć© movimento. Deixo uma traduĆ§Ć£o livre ā e ousada de minha parte ā do poema Il a trouvĆ© la Mort, de Dorothea Tanning.
Ele encontrou a Morte - ( Il a trouvƩ la Mort)
Em francĆŖs, morte Ć© feminina
Tipo uma mĆ£e ou irmĆ£
AlguĆ©m de quem vocĆŖ perde o contato
Quase esqueceu que existe
Anos e anos se passam
Sem notĆcias dela
Nada alĆ©m de sua maneira artĆstica
De nĆ£o esquecer de vocĆŖ.
Vestida de ossos, a Morte
Ć tambĆ©m representada como
Um macho sem o membro ā
Necessariamente, em suas bordas
Ć obstinadamente ameninada
E nĆ£o deve se confundir
Com o dela, um de rapaz
(Provando assim sua autoridade).
Os sexos! Sempre brincalhƵes ou
Mortalmente sƩrios? Poderia ser
que ela, sendo masculina
guiasse sua entrada com masculinice
Um comedido convidado
Que nĆ£o tem toda certeza
Ela-ele quer ir por ali?
Ć tudo tĆ£o confuso.
Talvez para os franceses
Nessa confusĆ£o se descanse
De uma vez por todas as velhas noƧƵes
De quem Ć© quem, o que vai para onde
Ć Ć³bvio que a lĆngua deles implora
charmosamente por essa questĆ£o
SenĆ£o para nĆ³s, para eles,
E os enxeridos fora desse assunto:
Nem ele ou ela,
A deusa-deus, delicadamente
Brinca de pique-esconde
A fim de surpreender
Ć apenas morte, a Morte
Quem faz promessa alguma
Exceto a de Ć s vezes estar lĆ”
Do outro lado da rua ā a vĆŖs?
Dicas:
O Instituto Moreira Salles para download gratuito parte de seu acervo fotogrĆ”fico e iconogrĆ”fico em domĆnio pĆŗblico. Uma das imagens utilizada no texto veio de lĆ”!
A
citou a Ćŗltima news nesse Ć³timo texto sobre a difĆcil arte de fazer coisas despretenciosamente;A
brisou sobre ter um nome prĆ³prio e usou minhas artes (!!!) para ilustrar seu texto;As caminhadas da
me lembraram bastante o livro Existo, existo, existo, que cito no texto de hoje.Este episĆ³dio da RĆ”dio Novelo, sobre bichos que hĆ” muito morreram e que foram roubados de nĆ³s.
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um abraƧo e atĆ© a prĆ³xima ediĆ§Ć£o,
paulamaria.
"Morte Ć© um substantivo feminino em portuguĆŖs, espanhol e francĆŖs. No MĆ©xico, a Santa Muerte.." gostei muito do seu texto Paula, fez um belo apanhado desse tema que tanto nos toca.
Que bonito ā¤ļø TaĆ um assunto que me consome galƵes de pensamento, e por mais que eles se esgotem, a morte nunca passa ilesa para quem fica. "A vida Ć© impermanente e Ć© essa sua premissa. ImpermanĆŖncia nĆ£o Ć© ameaƧa, impermanĆŖncia Ć© movimento": certeiro demais, isso. Beijo.