Oi!
No texto de hoje, uma divagação sobre o desejo. Aproveitando o dia dos namorados e o perfume de amor & sedução no ar, passeio entre leituras teóricas e a poesia de antes e de agora. Pego carona na frente fria que chegou com força em São Paulo e esquento sua caixa de entrada com o fogo perigoso e fascinante de Eros.
Boa leitura!

Uma dupla do barulho
Amor e desejo não são a mesma coisa. Em tese, quase todo mundo sabe, o que não significa que a gente não confunda as duas coisas, que não queira as duas coisas e que não viva perseguindo as duas coisas. O jogo da vida não rola num tabuleiro de duas dimensões, estamos mais para criaturas presas numa fita de Moebius em constante limite de rasgar e que, de repente, desenrola tudo de novo. O mote do desejo e do amor é costurado junto e dentro de nós, alternando entre presença e coexistência, total ausência ou presenças em oposição. Não é fácil resistir à necessidade de se colar a todas as partes do discurso amoroso hegemônico. Até mesmo quem se reconhece em outras dedicações do desejo, como uma vida religiosa ou mesmo assexual e arromântica não está a salvo dessa fome impertinente. O amor e o desejo estão em todas as nossas relações humanas – seja com o Outro, seja com o invisível. Quem ama e quem deseja está sempre no limite, na fronteira, na beirada de si e do mundo.
No encantador Eros: o doce-amargo – um ensaio, Anne Carson “coloca em evidência as experiências diversas de se apaixonar, ler e escrever – vivenciadas por e entre pessoas de gêneros, sexualidades e classes sociais diferentes”, conforme a apresentação da sagaz tradutora Julia Raiz. Entre autores da antiguidade clássica e suas leituras infinitas ao longo dos séculos, Anne se desafia ao tentar rabiscar que diabos é afinal esse eros, esse troço que nos persegue, nos aliena e nos enlouquece. Uma das primeiras explicações do eros é a falta, o querer, o desejo do que não está. Como quando estamos com fome, por exemplo. Carson cita a analogia feita por Simone Weil:
Todos os nossos desejos são contraditórios, como o desejo por comida. Eu quero que a pessoa que eu amo me ame. No entanto, se ele é totalmente devotado a mim, ele para de existir e eu deixo de amá-lo. E enquanto ele não for completamente devotado a mim, ele não me ama o suficiente. Fome e saciedade.
Padecer no paraíso?
Na aula aberta Éros, o desejo no imaginário grego, a professora Giuliana Ragusa localiza a discussão na era arcaica grega, época dos primeiros jogos em Olímpia, dos primeiros poemas homéricos e da fundação das pólis (cidades). Um mundo de oralidade prevalente, da tradição e cultura levados através da voz projetada para uma audiência: a centralidade da boca e do ouvido como os instrumentos da memória. O pensamento grego arcaico é mítico, essa tradição não concebe um mundo sem os deuses e suas narrativas organizam a experiência humana e preservam os valores de uma sociedade. Tudo o que era importante para eles tinha projeção no mundo divino.
Com Eros não seria diferente. Junto a Hímeros e Pothos, compõe a tríade do cortejo de Afrodite, a deusa do amor, da beleza e da sexualidade. Eros, contudo, é o único com uma personificação forte o suficiente para ser considerado deus, com cultos atestados pelos registros históricos. Inferior hierárquico de Afrodite, ora é seu servo, ora é seu filho. De todo modo, Eros é o desejo que Afrodite governa. Nesse sentido, a aula de Ragusa e a leitura de Carson se encontram: eros é a falta, paradoxal por definição e que precisa ser preenchida com urgência. A falta é o desejo, que vem como arrebatamento enviado pelos deuses, vem de fora do sujeito, portanto, à sua revelia. Em si, o dilema intrínseco: desejamos e queremos nos livrar. A experiência é sempre tormentosa, frustrante, obsessiva, impermanente. Assim como a fome, só se exaure quando é saciado – e então, emudece. Quem canta o eros, canta a sua falta. Na Teogonia de Hesíodo (tradução de Jaa Torrano), livro onde encontramos as <explicações> das origens dos deuses, temos no poema Os deuses primordiais:
e Eros: o mais belo entre Deuses imortais
solta-membros, dos Deuses todos e dos homens todos
ele doma no peito o espírito e a prudente vontade.
Ele <solta-membros> porque nos desmonta, nos adoece e nos possui. A arena erótica é de submissão, quem ama está subjugado ao controle de Eros, fica incapaz de funcionar como antes. É válido lembrar que para essa antiguidade, o amor e o desejo eram destinados aos jovens, a velhice está de fora do jogo amoroso. Para eles, juventude e beleza são uma dupla idolatrada. Quando se separam, ou seja, na velhice, quando se perde a beleza, perde-se a relação com Eros. Tal definição ecoa dos gregos antigos até a poesia romana, em especial na poesia de caráter médio, isto é: a poesia amorosa, que pode ser lírica ou elegíaca. Nas elegias romanas augustanas, algumas das tópicas mais importantes são a escravidão amorosa, o amor como doença e a militança amorosa. A <escravidão amorosa> diz respeito à submissão do amante à pessoa amada, como um servo, obrigado a cumprir as ordens e desejos da pessoa amada. O <amor como doença> deixa Eros explícito, pois o amor te retira do estado de controle de si. A <militança amorosa> se contrapõe ao valor romano do cidadão que vai à guerra e é socialmente reconhecido por isso. A poesia de caráter elevado, a poesia épica, versa sobre as guerras e seus soldados. Na poesia média, o amante é soldado do amor e prefere assim ser identificado, sua conquista é sua amada. Deixo um excerto de Ovídio (tradução de João Angelo Oliva Neto), em Amores 1, 2, que demonstra o ambiente da encenação elegíaca:
Eu confesso: já sou, Cupido, tua presa;
estendo à tua lei as mãos atadas.
Guerra não é preciso, eu peço paz, concórdia:
me venceres armado, eu inerme, traz glória?
(…)
Moços, meninas vão cativos desfilar,
e o cortejo há de ser teu grã triunfo.
Presa recente, eu vou mostrar a chaga aberta,
e novos suportar grilhões, submisso.
Mãos presas pelo dorso, irá a Boa Mente,
Pudor e o que peitar tropas do Amor.
Se não tem jeito, escreva!
Por fim, um apanhado entre os poemas de amor e desejo que dormem em minha biblioteca. Poderia pescar muitos outros mais, porém os guardo como um tesouro que ainda preciso desvendar. Afinal de contas, o <eros> também mora no mistério, no descontrole, na surpresa.
Teleobjetiva, Luiza Leite Ferreira
Teu olhar me captura
Como quem me enquadra
O que você não capta
É que não me entende nada.
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Como se fosse a casa, Ana M. Marques e Eduardo Jorge
Duas pessoas dançando
a mesma música
em dias diferentes
formam um par?
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Cantares do Sem Nome e de Partida, Hilda Hilst
O Nunca Mais é de planície e fendas.
É de abismos e arroios.
É de perpetuidade no que pensas efêmero
E breve e pequenino
No que sentes eterno.
Nem é corvo ou poema o Nunca Mais.
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PEÇA DE RITMO, Yoko Ono (tradução de Giovana Martins e Mariana Barbosa)
Escute as batidas de um coração.
Outono de 1963
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[MATCH MADE IN HEAVEN], Viviane Nogueira
eu vi o céu e as nuvens
fodendo
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[EPÍLOGO], Patrícia Lino
Quando Helena deixou a Lacedomínia, Alceu declarou-a
culpada. E todos concordaram.
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Menos os que achavam que ela tinha sido raptada e Safo,
que disse:
ー Foi por amor e por amor, quem não teria ido?
Agenda
Encontro Escritoras em conversa: terei a honra de bater um papo com queridas colegas do mundo literário Gaía Passarelli, Ana Rüsche, Surina Mariana e LiviaPiccolo, no dia 20 de junho, às 19h, na Livraria Ponta de Lança na Rua Aureliano Coutinho, 96.
Clube Quem Quer Ler: receberemos a autora Nayara Noronha para discutirmos o seu belo livro Filha, no dia 30 de junho, às 19h30, via zoom. Inscrições gratuitas.
Drops
Todas as cartas de amor são ridículas por Maria Bethânia e Cleonice Berardinelli
Uma playlist para amores impossíveis:
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um abraço,
paulamaria
Que texto delicioso Paula !
Que texto bom! Que mulher culta!