A caixa de Pandora
Desde crianças / ouvimos falar no fim, / agora o fim tem asas e patas, / que querem nos devorar. (Nicolás Lara)*
Nessa edição, publicada no Dia de Todos os Santos, um pequeno conto de horror cotidiano, em homenagem a uma cachorrinha que não pôde ver dias melhores. Espero de coração, que esteja no céu dos cães, a rolar numa grama quente e verdinha. Sagrados são os bichos.
*- Versos do poema Solidão Domesticada, do livro Os lobos, os vira-latas e Mayda, a muda, de Nicolás Lara, publicado pela Malha Fina Cartonera
Seus olhos castanho-claros combinavam com os abundantes pêlos marrons, que todos os anos, nas viradas de estação, caíam em tufos que ficavam ao sabor do vento de Vitória. Olhos sempre gentis, subservientes, lentos, antigos. Olhos de alguém que estava cansada de suportar tantos segredos, de alguém que queria se livrar de sua caixinha de todos-os-males-do-mundo. Que, no caso, eram os males daquela família, daquele micromundo, que emulava todo o resto do planeta no perímetro da casa número 80, de onde Pandora só saía para vacinar – e olhe lá.
Dormia trancada num cubículo de 1x1, na lavanderia que dava de frente para a cozinha. Não podia entrar em casa. “Fedida, fedorenta”, dizia sua dona. Não raramente estava infestada de carrapatos, pequenos e grandes. Por isso, quinzenalmente ele catava os parasitas, raspando os dedos por entre os pêlos tão grudados, tão juntinhos, tão sujos. Ele, o filho da dona, ficava com as unhas pretas de sangue pisado e pó de minério, acumulado na superfície rosa da pele da cachorrinha. Certa vez, um dos carrapatos pequenininhos subiu em minha canela, mordendo rapidamente. Ardeu, coçou, não adoeci.
Sinto que era um sinal de que a caixinha de todos-os-males-do-mundo estava prestes a abrir. Hoje eu sei, na época, não entendia. Tentava salvar a cã, a tartaruga, as flores, os livros, a avó, o filho até. De nada adiantaria sacrifícios, eu não sabia quais eram os feitiços para desfazer o encanto. Pandora não podia falar, apenas me olhava, com seus olhos de cã. E eu, que também não podia falar, olhava de volta, com meus olhos de menina.
Jamais fora castrada, segundo sua dona, era uma <lady> que jamais cruzaria com outro cão. Claro, não saía de casa. Veio então Bacco, seu irmão mais novo, um cachorro preto, vira-latas, um pária numa casa tão pretensamente distinta. “Onde você comprou, não tinha um cachorro branco?”, disse o avô ao neto. Coisas como essas, iam parar na caixinha de Pandora, em seu cubículo 1x1, na lavanderia. Bacco cresceu e tentou, como os bichos tentam sem saber porquê, cruzar com a irmã Pandora. Num átimo, sua dona gritou: “Nojento! Olha o que ele está fazendo, nojento!”. Não tiveram filhotes, Pandora já era idosa, Bacco talvez nunca mais tentou cruzar. Seguiram brincando, aos olhos vis de sua dona.
Em 2018, o pior ano de minha vida até então, Pandora não amanheceu. A dona ligou pro seu filho, que morava comigo, e disse: “Vem levar o corpo, não posso nem olhar”. Fazia quatro meses que não íamos na casa amarela. Ela (a dona) me abraçou e pensei: vou morrer também, acabou pra mim. Ele ligou para a clínica veterinária, que retirou o corpo da cã, sem muita cerimônia. Fomos embora. Bacco ficou deitado em frente à cela de sua irmã. Não comeu por dias. Uivou pela primeira vez. Herdou seus olhos tristes.
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Excelente conto.
Dica preciosa essa da British Library. Gracias!